Na fria manhã do outono paulistano, o time sub-20 do Juventus inicia os trabalhos de campo. Em meio ao grupo de jogadores, um jovem chama a atenção pelo olhar compenetrado. Interno da Fundação Casa, B. (abreviação do nome verdadeiro) participa do seu quarto treino, segue em observação e vem agradando à comissão técnica.
Reportagem de Toni Assis, especial para o Estadão
Na preleção, o tópico sobre a coragem se encaixa no propósito deste rapaz que chegou ao fundo do poço por causa do envolvimento com roubo e tráfico de drogas. “Quero uma vaga aqui no Juventus para tirar minha família do sufoco. Estou na fase de luta e sinto a necessidade de recuperar o tempo perdido para dar alegrias aos meus pais. Eles sofreram muito por minha causa.”
Quero uma vaga aqui no Juventus para tirar minha família do sufoco. Estou na fase de luta e sinto a necessidade de recuperar o tempo perdido para dar alegrias aos meus pais. Eles sofreram muito por minha causa (B., interno da Fundação Casa que tenta uma vaga no Juventus)
O contato com o mundo do crime o levou à Fundação Casa por cometer ato infracional. A consequência disso foi o cumprimento da medida socioeducativa na unidade Tapajós. “Fiz muita coisa ruim. Infelizmente, roubava, furtava, mexia com tráfico de drogas e corri várias vezes da polícia. Hoje, entendo que as pessoas trabalhavam para conquistar o que queriam Não tinha consciência de que elas estavam em busca de seus objetivos”, diz o jovem, em tom de arrependimento, à reportagem do Estadão ao fim daquele treino.
O olhar de B. brilha ao abordar a expectativa que se abre com a chance de se tornar jogador de futebol. Ele tem o corintiano Renato Augusto como ídolo e diz se espelhar no meia. “Desde pequeno, gosto dele e conheço a sua história. Veio também da periferia. Lutou muito por seus objetivos. Em campo, procuro me inspirar nele e seria um sonho poder conhecê-lo”
Enquanto fala da atribulada história de vida errada, o trabalho de um funcionário que cuida do campo faz o assunto mudar de rumo. O olhar de B. brilha ao abordar a expectativa que se abre com a chance de se tornar jogador de futebol. Ele tem o corintiano Renato Augusto como ídolo e diz se espelhar no meia. “Desde pequeno, gosto dele e conheço a sua história. Veio também da periferia. Lutou muito por seus objetivos. Em campo, procuro me inspirar nele e seria um sonho poder conhecê-lo.”
Durante a atividade no Juventus, o aspirante a jogador esbanjou disposição e deu mostras de qualidade técnica. Com boa finalização, velocidade no arranque e drible curto para se desvencilhar da marcação em espaço reduzido, ele ganhou elogios do seu chefe direto. “Tem qualidade, é muito dedicado. Tem coisas para evoluir, mas a determinação que tem ajuda muito”, disse o técnico Luizão.
Há um ano recluso na Fundação Casa e próximo de ser novamente inserido na sociedade, o jovem menor de idade ganhou a chance de treinar no clube da Mooca após ser observado em uma ação esportiva promovida pela OSC (Organização da Sociedade Civil) de Cajamar. Voluntário da instituição e coordenador técnico do Juventus, Marcel Barbosa gostou do desempenho do garoto. Ao lado de Conrado Agarelli, diretor do clube da zona leste, foi uma das pessoas a abrir espaço para que ele pudesse fazer essa bateria de testes.
“O esporte é uma ferramenta de inclusão muito poderosa. Trabalhei também no exterior e já vi muita coisa. Falo com eles que é preciso coragem para buscar os objetivos e a principal mudança tem de estar na pessoa”, afirmou Barbosa.
Dívida emocional com a família — Ver a bola como um prato de comida. Esse jargão, muito usado em preleções no futebol profissional, cabe bem para a realidade de B. Porém, mais importante do que conquistas materiais, B. quer resgatar o tempo perdido longe dos pais. “Minha mãe escreveu uma carta e comentou da tristeza da minha ausência, de não poder me abraçar, de não fazer as comidas que eu gosto. Olhava minhas roupas e chorava. Isso me cortou o coração.”
Sobre o pai, ele também demonstrou melancolia pelo distanciamento forçado. “Nesse tempo que estou na Fundação, ele me dá muitos conselhos. Quando falamos, tenta me motivar o tempo todo. Tive um choque de realidade quando soube que ele tinha perdido o emprego. Mas graças a Deus minha avó o acolheu. Quando sair daqui, quero remar junto com ele para conseguir os objetivos”, afirmou.
Do futebol à padaria e o gosto por fazer sonhos — “Dos doces que eu aprendi a fazer, o que eu mais gosto é o sonho. Espero agora construir um novo sonho para minha vida. Espero conseguir uma vaga aqui no Juventus.” A afirmação de B. é parte da realidade que cerca o seu cotidiano na Fundação Casa. Fruto do acompanhamento que é feito na instituição por meio do Plano Individual de Atendimento (PIA), ele foi chamado a participar do curso de panificação.
Lá, além de aprender a fazer pães, pizzas, doces e salgados, o jovem cultivou o trabalho em equipe. “É uma experiência que achei que nunca fosse ter na vida. Padaria é união. Um faz e manda para o outro. Aprendi a trabalhar em grupo e a ter preocupação com o próximo.”
Na contagem regressiva para deixar a fundação, B. fala das dificuldades dos primeiros meses da medida socioeducativa e comenta que o amadurecimento veio a duras penas. “Eu tinha muita revolta, não escutava ninguém e achava ser o dono da verdade. Fui obrigado a conviver com pessoas diferentes, com outra cultura, e tinha muito bate boca. Mas o trabalho psicológico foi o que mais me ajudou a mudar.”
Josué Dantas, diretor da unidade Tapajós da Fundação Casa e também presente ao treino para acompanhar B., contou do progresso do jovem. “Fizemos, além do acompanhamento psicológico, um trabalho psicopedagógico individual que também contou com a atuação de um assistente social. Procuramos estreitar os laços familiares para ajudar nesse processo.”
A adequação do garoto às regras da casa foi o primeiro passo. Segundo Dantas, o dia dos internos começa cedo. As aulas do curso regular de ensino vão das 7h às 12h35, logo após o café da manhã, com pão e manteiga e café com leite. Após o almoço, cursos profissionalizantes são intercalados na semana com atividades de educação física. Nas horas vagas, segundo o diretor da unidade, é comum ver B. dando voltas em torno da quadra e fazendo exercícios físicos por conta própria.
Reinserção na sociedade — No caminho natural para voltar ao convívio social, B. conseguiu construir uma verdadeira teia de amizades que podem render algumas facilidades fora da Fundação Casa. Um servidor da instituição, que pediu anonimato, vai ceder um apartamento para que ele possa morar. A pastoral se encarregou de encaminhar um trabalho para o pai, que vai se mudar para São Paulo a fim de residir com o filho na região de Franco da Rocha.
O curso de panificação também já vai trazer benefícios imediatos, já que o jovem vai prestar serviços para uma ONG. Pelo ofício, ele terá direito a uma ajuda de custo de R$ 400 para trabalhar como confeiteiro e padeiro, além da cesta básica mensal. Até mesmo para essa fase de laboratório no Juventus, o interno teve um empurrãozinho da turma da Fundação. A ajuda, nesse caso, veio em forma de um par de chuteiras.
Para Fernando José da Costa, secretário da Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo e presidente da Fundação Casa, o trabalho da instituição envolvendo o esporte como ferramenta de inclusão é uma arma poderosa no trato com os internos. “O esporte já é uma tradição aqui e estamos no 17º ano da Copa Casa. A atividade física educa com disciplina. Nos treinos que ele (B.) vem fazendo, nosso acompanhamento é total e acredito que estamos dando uma boa chance a ele de voltar ao convívio da sociedade recuperado.”