Há nove anos uma referência do movimento hip-hop em São Bernardo do Campo, na região metropolitana de São Paulo, a Batalha da Matrix luta para sobreviver à resistência da prefeitura, da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana (GCM). Toda terça-feira, a partir das 19h, a festa reúne mil pessoas diante da Igreja Matriz, no centro. Mas sofre para realizar a máxima expressa em uma das letras do rapper Emicida: “a rua é nóis”.
A repressão começou ainda sob a gestão do ex-prefeito Luiz Marinho (PT), no início da ocupação do espaço público, de maneira sutil, com a presença de guardas civis metropolitanos que tentavam desligar os amplificadores e impedir que o evento ocorresse.
Diante da resistência dos organizadores, realizadores e do público que comparece religiosamente toda semana, o enfrentamento cresceu até atingir o momento mais tenso, em 2016, quando a Polícia Militar interviu e utilizou bombas de gás para acabar com a atividade.
A violência, porém, não conseguiu impedir a batalha e, sob gestão de Orlando Morando (PSDB), que alega o incômodo a moradores numa área majoritariamente comercial, o enfrentamento aos MCs que se encontram para colocar à prova os versos de improviso, aos DJs e grafiteiros ganhou um caráter econômico.
O produtor cultural, rapper e professor de inglês Lucas Fonseca do Vale, o dovaLE, é um dos organizadores da festa. Ele conta que a partir da eleição do tucano, em 2017, a estratégia tem sido minar os movimentos culturais que aconteciam nas ruas. “No segundo mês de mandato estávamos numa festa de reggae no Jardim Floral e ele enviou viaturas da GCM e caminhões com ordem de apreender o som. Ali ele deu um sinal de que não permitiria mais ocuparmos as ruas”, explica dovaLE. Um dos métodos para sangrar os eventos é multar e fazer apreensões. No início de junho, o produtor recebeu duas multas no valor de R$ 7.548,06 por infringir a lei 6.323/2013, que estabelece as normas para ruídos e sons no município.
Segundo dovaLE, as notificações se deram de maneira irregular. Primeiro, porque a aferição deve ocorrer a partir do local onde foi realizada a denúncia de barulho excessivo, mas a guarda utilizou o decibelímetro no próprio local onde ocorre a festa. Segundo, porque as multas exigem notificação, semelhante às multas de trânsito em que a vítima indica o condutor, mas o boleto para pagamento chegou sem qualquer indicação prévia.
O caso repercutiu e gerou manifestações de apoio de lideranças dos movimentos sociais como Guilherme Boulos, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Douglas Belchior, da Coalização Negra por Direitos, e do deputado federal Vicentinho de Paula (PT), que utilizou as tribunas da Câmara dos Deputados para questionar a repressão às batalhas. Ele apontou que a Constituição Federal garante o acesso às vias públicas. “Esse movimento vem sofrendo ameaças, a administração não permite ou não quer permitir que se reúnam. O artigo 5º garante o direito à ocupação das praças sem autorização prévia. Não há nenhum impedimento para que esses jovens se manifestem”, destacou.
A batalha de Morando — A criação de dificuldades é constante. Em setembro 2017, os organizadores da Batalha da Matrix solicitaram a utilização da pista de skate no Parque da Juventude para fazer uma das seletivas a um encontro estadual. A prefeitura exigiu R$ 20 mil pelo acesso, mas uma manifestação diante da casa do então secretário da Cultura, Adalberto Guazelli, fez a prefeitura mudar de ideia e o evento ocorreu, da mesma forma que os encontros na Matriz. Até o início da pandemia.
Se o isolamento social abriu uma espécie de trégua (entre aspas), a tensão voltou assim que atividades presenciais começaram a ser retomadas. “Em novembro de 2021, entramos em contato com o poder público para voltar. A Secretaria de Cultura aprovou; a de Segurança Urbana, não.”
Na primeira festa aberta ao público, em 12 de abril deste ano, a prefeitura negou acesso à tomada e não deu para usar amplificadores. As demais tiveram de ocorrer com o uso de caixas de som alimentadas por bateria, com tempo de duração menor e que precisam ser trocadas ao longo do encontro.
O movimento denuncia ainda a presença de guardas sem identificação, que realizam abordagens violentas e pressionam bares e lanchonetes a fechar às 20h.
Mudança de local — A gestão Morando propõe que as batalhas saiam da praça e sigam para o Parque da Juventude sob a alegação de que não há estrutura para receber o evento no local, ponto histórico de lutas e manifestações do movimento sindical na cidade durante a ditadura militar e que continua a sediar atos e assembleias. O argumento de que não há contingente de guardas para fazer a segurança do local contrasta com a presença de várias viaturas estacionadas no espaço a cada encontro.
Em maio de 2022, o Ministério Público de São Bernardo instaurou um Procedimento Administrativo de Acompanhamento para apurar denúncias de racismo institucional contra a prefeitura a partir de um documento apresentado por movimentos sociais com denúncias sobre a falta de políticas públicas para a população negra e indígena da cidade.
De acordo com dovaLe, os organizadores não conseguem dialogar sobre um plano conjunto que seria comercialmente favorável ao município. Ele aponta que a produção do encontro apresentou um planejamento de economia criativa a um local que já recebe outros eventos, como quermesses, e poderia trazer vendedores ambulantes registrados para comercializarem comidas, bebidas e artesanato. Uma forma de gerar mais renda para os trabalhadores e para a cidade.
“Isso ajudaria até mesmo na segurança, quanto mais pessoas ocupando o espaço, menor o número de crimes. Temos esse plano traçado, mas o Orlando Morando nunca aceitou sentar para conversar com a gente”, critica.
Sem resposta – A reportagem do Expresso na Perifa fez contato com a prefeitura e com a assessoria da GCM, mas, até o fechamento desta reportagem, não obteve retorno. O espaço está aberto.