Um livro para transexuais lerem e enxergarem que podem ser o que quiserem. Este é um dos objetivos de Transresistência: Pessoas Trans no Mercado de Trabalho, do jornalista Caê Vasconcelos. Editada pela Dita Livros, a publicação será lançada no dia 29 de janeiro, Dia Nacional da Visibilidade Trans.
Ser uma pessoa trans no Brasil é resistir, daí o título da obra que reúne histórias de trans e travestis que conseguiram fugir das estatísticas do desemprego e da exploração sexual num País em que 90% dessa população precisa recorrer à prostituição para sobreviver, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
“Quando decidi escrever um livro sobre esse tema, eu queria mostrar para as pessoas trans que existem outras possibilidades”, diz Caê. “Não é fácil e até hoje existem muitas que nunca trabalharam em uma empresa. São pessoas que, muitas vezes, trabalham com a arte que é o que as acolhe.”
Transresistência começou a nascer em 2015 no trabalho de conclusão de curso em jornalismo na universidade Fiam-Faam. Caê ainda não se identificava como homem trans. Foram dois anos debruçado sobre a exclusão dessa população do mercado de trabalho. Para o lançamento em 2022, a obra ganhou novas histórias e o relato de Caê sobre o próprio processo de descoberta e aceitação. Quem assina a orelha é a ativista Neon Cunha, primeira mulher trans a ter o nome retificado no Brasil.
“Na época, eu não conseguia entender por que alguma coisa muito forte me levava para esse tema”, conta o autor. “A primeira vez que eu percebi que poderia ser uma pessoa trans foi escrevendo esse livro. Quando comecei a entrevistar as pessoas, senti como se a história delas fosse a minha. Isso foi revolucionário para mim, não apenas como repórter.”
Uma das histórias é a de Luiza, que percorreu a trilha do tráfico sexual na Europa, onde conheceu museus. Ao voltar para o Brasil, ela se tornou a primeira funcionária trans do Museu de Arte de São Paulo (Masp), um dos cartões-postais da Avenida Paulista, em São Paulo.
Duas parlamentares trans eleitas pela capital paulista em 2020 estão retratadas em Transresistência. Uma delas é Carolina Iara, co-vereadora pela Bancada Feminista do PSOL, que traz sua vivência como pessoa intersexo.
Erika Hilton, primeira vereadora trans eleita na história da Câmara Municipal de São Paulo com mais de 50 mil votos, é a outra parlamentar perfilada. Em fevereiro de 2021, Erika esteve no centro do programa de entrevistas “Roda Viva” (TV Cultura). Foi então que Caê se tornou o primeiro jornalista transexual a participar da bancada de entrevistadores, uma das mais tradicionais no País.
“Em tudo que escrevo sobre pessoas trans eu tento ser didático para que todos entendam como a transfobia é estrutural”, diz o autor. “O gênero não está na genitália e a gente já nasce condicionado a ser uma pessoa cis, o que faz com que todas as pessoas trans acabem sendo violentadas.”
‘Percebimento’ — Caê Vasconcelos nasceu e cresceu na Vila Nova Cachoeirinha, bairro na periferia da zona norte de São Paulo. Em 2017, ano em que concluiu a graduação em Jornalismo, passou a colaborar com a Agência Mural de Jornalismo das Periferias e a Ponte Jornalismo, onde se destacou na cobertura de segurança pública e sistema prisional.
Com a perda da mãe no mesmo ano, a quem o livro Transresistência é dedicado, seguiram-se anos em um processo terapêutico para lidar com o luto e os demais sentimentos. “Indiretamente, todo esse processo de acolhimento e de revisitar a infância me fez entender que não era só pelo meu livro, eu sempre preferi as brincadeiras ditas de menino, mas precisei conversar com outras pessoas trans também”, recorda.
Embora o processo de escrita do Transresistência tenha tido um papel significativo na identificação como um homem transexual, Câe conta que quem o “empurrou” do armário foi a arte — mais especificamente o filme Bixa Travesty (2018), protagonizado por Linn da Quebrada e dirigido por Claudia Priscilla e Kiko Goifman.
“Depois de assistir eu conversei com o Pedro, um amigo que é uma das pessoas muito importantes e que está no meu livro, sobre o medo que eu tinha do que poderia perder”, diz Caê. “Se eu tivesse feito a transição em 2017, eu não sei como eu estaria psicologicamente. Minha família não estaria pronta para me aceitar por causa do luto da minha mãe e eu precisava que eles entendessem o que era a transgeneridade”, emenda.
Ao sair do armário pela segunda vez em 2020 — a primeira tinha sido em 2008 como mulher LGBT —, Caê se viu diante do desafio de explicar para as pessoas de seus círculos, familiar e profissional, que seu gênero e nome iriam mudar. A solução encontrada foi publicar nas redes sociais um texto onde se apresentava. O jornalista se emociona ao relembrar o acolhimento e o respeito que recebeu da avó, Raimunda. “Teve um dia que eu cheguei lá [na casa dela] e ela me chamou de meu neto. Foi uma emoção absurda. Isso para mim não tem preço”, descreve.
‘A transexualidade salvou minha vida’ — Antes de passar pelo processo de identificação e aceitação como um homem transexual, Caê era uma pessoa insegura profissionalmente. Não sabia lidar muito bem com elogios, diz. “As pessoas diziam que eu tinha uma sensibilidade como jornalista, mas eu não conseguia me ver dessa forma.”
O autor não romantiza a transgeneridade. Alguns medos se fortaleceram, como o da violência, mas ele afirma se sentir mais vivo por ser quem é. “Eu ainda tenho dificuldade de me posicionar quando me chamam pelo nome errado, mas a transição salvou minha vida profissional e pessoal. Foi a melhor coisa que eu pude fazer por mim e pelas pessoas que estão ao meu redor.”
Um dos planos que o jornalista pretende tirar do papel em 2022, ao lado de outros comunicadores trans, é a criação de uma agência de jornalismo com conteúdo voltado à população transexual. “A transição me ajudou a entender que a gente precisa avançar coletivamente e toda porta que eu abro me faz pensar nas pessoas trans que virão depois de mim. Eu não quero ser o único homem trans no ‘Roda Viva’.”
A edição do livro pode ser adquirida no site da editora.
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