A vida desafiadora de Vera Eunice de Jesus, 68 anos, sempre exigiu respostas corajosas. Mulher negra de sorriso generoso e mais de trinta anos dedicados ao ensino, manifestou muito cedo a vocação para ser professora — sua primeira “aluna” foi a própria mãe, um dos maiores nomes da literatura brasileira. Tudo que aprendia na escola as duas depois estudavam juntas.
A mineira Carolina Maria de Jesus (1914-1977) foi escritora, poeta e compositora; catadora de papel e moradora da periferia. Vera Eunice e seus dois irmãos (João José e José Carlos) viveram com a mãe em todos os endereços: barracos, casas, albergues, noites na rua. Isso inclui a morada na favela do Canindé, às margens do rio Tietê, cenário do livro mais famoso, Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada.
O gosto pela leitura e o grande abraço, que consegue trazer para perto os cinco filhos, Vera Eunice considera heranças de sua mãe. “Sempre andei muito com minha mãe, dormi na mesma cama que ela até os 18 anos. Quando havia enchente, a água inundava os barracos e íamos todos juntos para os albergues. Quando tínhamos de dormir nas ruas, também estávamos juntos. Com ela aprendi a importância de tê-los [os filhos] sempre por perto e que o bem moral é mais importante do que o material”, lembra.
Vocação — Um dos sonhos de Carolina era ver sua filha formada professora. No colégio, as redações se destacavam pela escolha das palavras.“Quando eu tinha uns 10 anos já sobressaia no português. Minhas redações sempre eram publicadas na “Folhinha” (suplemento do jornal Folha de S. Paulo dedicado às crianças). Minha mãe falava muito bem dentro de casa e meu vocabulário era rico. Enquanto as outras crianças escreviam sobre o homem que tirou leite da vaca, eu já chamava de ordenhador”, diz.
Minha mãe falava muito bem dentro de casa e meu vocabulário era rico. Enquanto as outras crianças escreviam sobre o homem que tirou leite da vaca, eu já chamava de ordenhador
Quando cresceu, Vera passou a revisar os trabalhos literários da mãe. E realizou seu sonho. Fez magistério, cursou letras, prestou concursos e começou a dar aulas. Aposentada pelo Estado, a professora ainda leciona numa Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) na Vila Rubi.
Todos pela comunidade — No mesmo bairro, fica a organização não governamental Ação Solidária Carolina Maria de Jesus, uma materialização do projeto de professoras do extremo sul da cidade de São Paulo e uma resposta a demandas da sociedade que chegam nas salas de aula: por meio de doações, rifas, financiamentos coletivos e apoio de grupos periféricos, a ONG mobiliza organizações e interfere diretamente na vida das comunidades.
“Vemos muitas mães sozinhas criando os filhos. Quando não tinham mais nada para angariar recursos, mandavam as crianças pedir na escola e aí deixamos de ser [só] professores para nos tornarmos amigos”, diz. Ao redor de Vera Eunice, orbita uma rede de solidariedade que busca combater a fome e encontrar alternativas à falta de trabalho agravada pela pandemia.
Levantamento divulgado em março de 2021 pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), entre agosto de 2020 e fevereiro de 2021, 17,7 milhões de pessoas voltaram à pobreza. Na outra ponta, estudo da Oxfam em janeiro de 2021 diz que as mil pessoas mais ricas do mundo recuperaram as perdas que tiveram em apenas nove meses, entre fevereiro e novembro de 2020. Os dez maiores bilionários do planeta acumularam US$ 540 bilhões entre março e dezembro de 2020, o equivalente a R$ 2,75 trilhões.
Como a mãe, capaz de enxergar muito além do que estava diante dos olhos, Vera também vê nas salas de aula, conversas e palestras para adolescentes uma oportunidade de contar as histórias vividas e modificar rumos. Seja no espelho presente em cada criança na periferia, seja em auditórios nos bairros da região central de São Paulo. “Adoro dar palestras para adolescentes. Outro dia, numa escola em Paraisópolis, uma menina negra veio me contar que havia lido o livro da Carolina e que isso a fez sentir capaz de alcançar o sonho dela. É gratificante perceber a mudança na criança a partir da sala de aula.”
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