Reconhecer um criminoso é difícil para a vítima, mas, quando a identificação tem erros, pessoas inocentes podem pagar por crimes que não cometeram. Foi o que aconteceu com João Luiz da Silva Oliveira, homem negro de 33 anos.
João mora em Queimados, na Baixada Fluminense. É técnico de enfermagem e pai de um menino. No dia 2 de setembro de 2021, ele recebeu um telefonema e foi avisado de que deveria ir à 55ª Delegacia de Polícia de Queimados para “resolver um problema”. Ao chegar, recebeu voz de prisão.
João mostrou que estava trabalhando no momento do crime ocorrido e só oito dias depois teve a prisão revogada — mas não foi inocentado. Responde ao processo em liberdade e a vítima ainda não foi chamada para o reconhecimento presencial. “Assim que o delegado me perguntou se eu tinha como comprovar, falei que tinha as câmeras, os pacientes e minha folha de ponto. Liguei para onde trabalho e pedi a folha, que comprovou o que falei. Mesmo assim me prenderam”, conta com a voz embargada.
Não parou por aí — Depois de tudo isso, uma nova acusação contra João foi aceita por uma juíza. Dessa vez, ligada a um assalto ocorrido em Nova Iguaçu. “Alguns dias depois, o telefone de uma das vítimas foi recuperado com um suspeito”, conta Stephanie Corrêa, advogada do técnico de enfermagem. “À polícia, o homem disse que teria feito uma negociação da venda do aparelho com o perfil de João no Facebook, desativado desde 2018.”
A defesa alega que a 55ª DP incluiu fotos de João no álbum de suspeitos com base apenas na declaração da pessoa apreendida com o telefone roubado. “Ele apontou o perfil do João, porém não apresentou prova, nenhum print de conversa. Não tem nada que ligue esse perfil antigo à negociação”, alega Stephanie.
O casal assaltado foi chamado para fazer reconhecimento fotográfico. A mulher não reconheceu João; mas o marido dela o identificou. Na identificação presencial, no entanto, o homem retirou a acusação.
Outro lado — Questionada pela reportagem sobre qual critério utilizado para que uma foto vá para o livro de suspeitos e de que maneira as vítimas são conduzidas para o reconhecimento, a Polícia Civil do Rio não se manifestou.
Em nota, a corporação limitou-se a dizer que desde outubro de 2020 orienta os delegados a não utilizar o reconhecimento fotográfico como única prova em inquéritos para pedir prisões. “A instituição informa que o método, aceito pela Justiça, é um instrumento importante para o início da investigação, mas deve ser ratificado por outras provas técnicas, como a formalização de um reconhecimento presencial do suspeito”, acrescentou.
Caso não é isolado — Um estudo da Defensoria Pública estadual e do Conselho Nacional das Defensoras e dos Defensores Públicos-Gerais contabilizou 58 erros em reconhecimento fotográfico no Rio, entre junho de 2019 e março de 2020. Dentre os casos que tinham a descrição da cor, 80% das vítimas eram negras.
Em outubro de 2021, sete ocorrências semelhantes à de João foram registradas na Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio: Gustavo Nobre, Jefferson Pereira, Cláudio Júnior, Gabriel Pereira, Raoni Lázaro, Tio Phill e Anderson — todos jovens negros vítimas de falhas no reconhecimento fotográfico. Alguns foram inocentados e outros ainda respondem em liberdade.
Em meados de novembro, outro caso. O estivador Alberto Meyrelles Junior, de 40 anos, foi preso acusado de um crime do qual foi vítima há dois anos e meio. Ele estava na casa da mãe quando os policiais o levaram, alegando que ele teria participado de um assalto.
Era abril de 2019. Alberto estava num bar com amigos quando foi assaltado por criminosos armados que levaram tudo que ele tinha. Mais tarde, os documentos dele seriam encontrados no carro dos assaltantes, que era roubado. A dona do veículo disse à polícia que um deles era negro, gordo, aparentava ter 25 anos e 1,70 metro de altura. Viu a foto de Alberto e o reconheceu. O estivador de 40 anos de idade e 21 de profissão tem 1,85 metro de altura.
“Foi uma injustiça”, diz Alberto. “Preto agora é tudo igual? Só escutaram a mulher que me acusou e me colocaram como culpado mesmo. Nos primeiros dias eu tive esperança de sair porque sabia que era inocente, mas nunca era solto e passei a ficar o dia todo dormindo.” Ele passou 20 dias preso.
Racismo estrutural — A deputada estadual Dani Monteiro (Psol), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, relaciona o problema ao racismo estrutural.
“No país que pune, marginaliza, persegue e cerceia pessoas negras, pobres e faveladas, essa tecnologia [de reconhecimento fotográfico] pode ser usada para legalizar o racismo”, afirma Dani Monteiro. “Não importa que a gente se desenvolva tecnologicamente se a gente não foi capaz de promover rupturas com o pensamento social de outra época. Inevitavelmente, o nosso olhar sobre o que é segurança, se sentir seguro, se constrói na marginalização e criminalização de pessoas negras.”
O que dizem os especialistas — O Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), que presta serviço jurídico gratuito para pessoas negras na área criminal, diz que casos como esses só vão parar de ocorrer a partir de um debate racial dentro de todas as esferas judiciais.
“Esses erros acontecem com tanta frequência e são naturalizados porque falamos de pessoas negras, de territórios racializados”, diz Juliana Sanches, advogada e coordenadora jurídica do IDPN. “Enquanto Ministério Público, Defensoria Pública, Magistratura, Executivo, Legislativo, entre outras instituições, forem majoritariamente brancas, elas serão estruturalmente racistas. Enquanto não houver conscientização racial, e o debate sobre raça não estiver presente no Direito Penal e Processual Penal, nós continuaremos permitindo essas ilegalidades.”
Especialista em políticas públicas de justiça criminal, Juliana Ferreira concorda: “O racismo da sociedade é estrutural, como bem ressalta [o autor] Silvio de Almeida, e permeia nossas relações mais cotidianas, assim como as da polícia.” A prática do álbum de suspeitos, segundo Juliana, deve se abolida. “Ele é a fonte dos maiores erros de reconhecimento no Brasil. É o que mais explicita o racismo estrutural e institucional das polícias”, afirma.
Na avaliação da especialista, muito do que acontece nesse cenário de erros e injustiças tem a ver com a carência de outras provas que contrabalancem o valor da prova testemunhal, que costuma ser a mais forte. “Há uma grande precariedade das polícias na produção de exames de DNA, assim como exames que reconheçam as digitais; não há a preservação dos locais de crime”, explica Juliana. “Os laboratórios periciais precisam ser instrumentalizados para que a prova testemunhal tenha menos força.”
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