Toda primeira sexta-feira do mês, no cruzamento da Rua do Hospício com a Avenida Conde da Boa Vista, em Recife (PE), acontece religiosamente a famosa Batalha da Escadaria, que reúne MCs e amantes do rap para fazer rima e conversar sobre o movimento hip-hop. Este ano, quando completa 15 anos de resistência, foi reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial do Recife.
A Batalha da Escadaria surgiu em 2008, com iniciativa do rapper Luiz Carlos Ferrer, conhecido como Duh. Por muito tempo, os encontros aconteciam uma vez por mês, mas hoje em dia as reuniões se estendem até três vezes e sempre a partir das 20h. A Batalha é considerada uma das mais antigas do Norte e Nordeste e atualmente também é responsável por organizar as seletivas para o Duelo Nacional de MCs, que acontece em Belo Horizonte.
“Nós somos criadores de tudo” – Duh cresceu escutando música negra, principalmente rock e blues. Ele explica que essa foi a primeira influência para que ele começasse a consumir rap. “Nós somos criadores de tudo, o rock é negro, o blues é negro, o rap é negro”, diz. Quando ganhou um skate aos 10 anos de idade, também começou a conhecer mais pessoas do mundo da música e foi se aprofundando, principalmente no hip-hop.
Duh conta que decidiu criar a Batalha da Escadaria após o fim de ‘Inquilinos’, grupo de rap que tinha com amigos. Através da música, ele ficou próximo a outros MCs da cena que estavam também organizando os próprios duelos em outras cidades, como o rapper Criolo.
“Já estava decidido a criar uma batalha porque todo mundo mais ou menos começou a organizar as suas. Criolo, meu parceiro das antigas, tinha a Rinha dos MCs e tinha outras surgindo como a Batalha do Real, a primeira do Brasil, no Rio de Janeiro, em São Paulo tinha a do Santa Cruz, tinha em Belo Horizonte também. Falei com um brother que é designer e ele criou uma logo e me deu”, cita. “ Na primeira batalha não tinha quase ninguém, a galera não sabia da existência de batalha de MCs. Existiram outras antes, mas era uma vez por ano. A Escadaria tinha constância de ser uma vez por mês, depois foi duas vezes e às vezes têm quatro ou cinco batalhas”, explica o organizador.
O rapper recifense, amigo de longa data de Criolo, fala também sobre o apoio de grandes rappers da geração com a Batalha da Escadaria e com pequenos projetos de rap, citando Emicida, Mano Brown e até Sabotage. Essa irmandade, presente no movimento, foi e ainda é muito importante para o crescimento da cena do rap no Brasil.
Rap é compromisso – O amor e o compromisso com o hip-hop é o ponto de ligação entre os novos e antigos frequentadores. Para Duh, existe uma diferença entre o movimento e a cena do hip-hop e a Batalha se encaixa como parte do movimento. Ele diz que muitos jovens enxergam a Escadaria como uma escola e assume que é preciso, de alguma forma, educá-los sobre temas pertinentes à sociedade.
“Já vi várias pessoas falando: mano, eu tava dessa forma, fui para a batalha, melhorei”. Tem gente que diz que o pai e a mãe não mudou a vida e a Batalha mudou. Muita gente aprendeu a respeitar tudo que o pai e a mãe falavam. É uma parada de formação, de educação. Um MC com 12 anos chega lá, vocês acham que ele sabe o que é machismo e homofobia? Ele não sabe porque o colégio não ensina. Até hoje não falam nem sobre Zumbi dos Palmares”, lembra o organizador.
Nas redes sociais, a Batalha demonstra ter posicionamentos críticos e políticos sobre assuntos atuais. Assuntos esses que nem sempre a cena do RAP quer debater, principalmente sobre como a cultura do hip-hop ainda é machista, misógina e LGBTfóbica. Luiz deixa evidente nas redes sociais e no ‘mundo real’ que pessoas acusadas de agressão verbal ou física contra mulheres são proibidas de participar da Batalha.
“Essas pessoas não podem participar de Batalha porque isso vai se naturalizando. Daqui a pouco vários monstros vão estar participando. Eu venho do estado que mais mata pessoas LGBTs e mulheres, eu não tô nem aí o que eles acham ou falam da gente nas rodinhas. Eu barro totalmente”, diz.
O reconhecimento e a representatividade – Em abril, a Batalha da Escadaria foi reconhecida pela Câmara Municipal como Patrimônio Cultural Imaterial do Recife. O Projeto de Lei 292/22 foi de autoria da vereadora Cida Pedrosa (PCdoB). Ao citar a importância do título, Luiz aponta que isso foi um grande passo para a cultura que está sendo produzida no Nordeste quanto do Brasil.
“Isso é uma coisa importante e foi muito gratificante. Quando Cida [Pedrosa] propôs não foi por coleguismo, mas sim porque ela acredita e sabe da importância da Batalha. Para mim e para o movimento hip-hop tanto no Brasil como no Nordeste, foi muito importante. A partir disso, outros projetos vão surgir, outras pessoas vão poder conhecer”.
Este ano, a Batalha conseguiu levar novamente o rap para os palcos de grandes festivais e eventos no Recife, como o Rec-Beat, Recife Mais Verde e o No Ar Coquetel Molotov. Dentre os projetos que a organização pretende retomar em 2024, está o ‘Batalha nas Comunidades’, que foi interrompido com a pandemia da Covid-19. A proposta visa levar mais sobre a cultura hip-hop e o duelo de freestyle para crianças e jovens de zonas mais afastadas do centro.
Um “quilombo urbano” – Além desse projeto, a Batalha pretende lançar um documentário, em fevereiro, que conta a história da Batalha da Escadaria desde o início e relembra momentos importantes do movimento Hip-Hop em Pernambuco.
Ao falar sobre como enxerga a Batalha, Duh reforça que, apesar de ser o criador, nada se estabelece sem os verdadeiros amigos que ajudaram ao longo da caminhada. E com o apoio deles, a intenção é fazer com que a Escadaria seja ainda mais reconhecida em outros estados do Brasil.
“Acho que a Batalha vai além do duelo de MCs, ela é um quilombo urbano no centro e é muito respeitada por todos. Tem gente que me reconhece dos vídeos, e muitas vezes nem colou lá. A Batalha é uma escola e a minha intenção é levar a cultura do Hip-Hop para fora, levar o Nordeste para outras regiões também”.
Serviço: Evento “Batalha da Escadaria” – No cruzamento da Rua do Hospício com a Av. Conde da Boa Vista, no Recife | Toda primeira e terceira sexta-feira do mês, às 20h