Livia Lima, do coletivo Nós, Mulheres da Periferia, reflete a importância da voz da artista na tomada de consciência das mulheres negras diante de seus corpos, suas lutas e seu direito de viver
No dia 29 de julho a cantora norte-americana Beyoncé lançou mais um álbum, o sétimo de sua carreira. Renaissance, segundo divulgação da artista, celebra o fim do isolamento provocado pela pandemia de covid-19, e os reencontros na pista de dança. Com 16 canções conectadas como em uma mixagem de DJ, o álbum celebra a música negra.
Mais do que colocar o público para dançar, Beyoncé levanta a autoestima das pessoas pretas, principalmente das mulheres e da comunidade LGBTQIA+. Ela inclusive dedica o álbum ao tio gay Johnny Knowles, que morreu por complicações do HIV.
Mais do que colocar o público para dançar, Beyoncé levanta a autoestima das pessoas pretas, principalmente das mulheres e da comunidade LGBTQIA+
Existe muito preconceito e falta de conhecimento quando se discute música, principalmente os gêneros mais populares, entre o público de massa. Reduzir a trajetória, o talento e o trabalho de Beyoncé ao padrão da música pop é um grande erro. Qualquer especialista reconhece que sua produção é bem acima da média.
Para falar de Beyoncé, eu me coloco no lugar de uma fã, que tem uma grande admiração por tudo que ela entrega e especialmente pelo que representa para nós, mulheres negras. É muito fácil para quem não nasceu em condições de racismo e subalternidade ridicularizar a sensação de empoderamento que sua imagem e obra suscitam entre nós. As ditas pessoas “cultas” e “elevadas” que adoram menosprezar a arte que alcança o sucesso do mainstream. Por que uma mulher negra não pode ser reconhecida por sua excelência e destaque nos topos das paradas?
No romance Amada, a escritora estadunidense Toni Morrison (1931-2019) — primeira mulher negra a ganhar o Nobel de literatura — trata da necessidade, da importância, de as pessoas desumanizadas [pelas outras] reivindicarem o amor. O livro, baseado em fatos reais, conta a história de mulheres escravizadas.
Um trecho da obra diz o seguinte: “…aqui, neste lugar, nós somos carne; carne que chora, ri; carne que dança descalça na relva. Amem isso. Amem forte. Lá fora não amam a sua carne. Desprezam a sua carne. Não amam seus olhos; são capazes de arrancar fora os seus olhos. Como também não amam a pele de suas costas. Lá eles descem o chicote nela. E, ah, meu povo, eles não amam as suas mãos. Essas que eles só usam, amarram, prendem, cortam fora e deixam vazias. Amem suas mãos! (…) Vocês têm de amar, vocês!” E continua: “Vocês têm de amar. É da carne que estou falando aqui. Carne que precisa ser amada. Pés que precisam descansar e dançar; costas que precisam de apoio; ombros que precisam de braços, braços fortes (…). Sem dizer mais, ela se levantava então e dançava com o quadril torto o resto que seu coração tinha a dizer enquanto os outros abriam a boca e lhe davam música. Notas longas até a harmonia de quatro partes estar perfeita para sua carne profundamente amada.”
Pensei no romance de Morrison enquanto escutava o novo álbum de Beyoncé, porque em algumas das letras, como na canção Cozy, ela afirma o amor à pele preta. Ela exalta o quanto é negra no sample da artista trans TS Madison. Aqui, em tradução livre: “Ela é um deus, ela é uma heroína/ Ela sobreviveu a tudo o que ela passou/ Confiante, ela é letal (…) Porque ela está confortável/ Confortável na minha pele/ Aconchegante com quem eu sou”.
No single Break my Soul, lançado antes do álbum completo, a cantora expressa liberdade em relação ao trabalho e celebra uma nova paixão, mas destaca que ao buscar o amor ela encontrou, antes de tudo, a própria autoestima. “Você não vai quebrar minha alma”, avisa no refrão.
No artigo Vivendo de Amor, a teórica feminista bell hooks (1952-2021) afirma: “O amor precisa estar presente na vida de todas as mulheres negras, em todas as nossas casas. É a falta de amor que tem criado tantas dificuldades em nossas vidas, na garantia da nossa sobrevivência. Quando nos amamos, desejamos viver plenamente. Mas quando as pessoas falam sobre a vida das mulheres negras, raramente se preocupam em garantir mudanças na sociedade que nos permitam viver plenamente. Geralmente enfatizam nossa capacidade de ‘sobreviver’ apesar das circunstâncias difíceis, ou como poderemos sobreviver no futuro. Quando nos amamos, sabemos que é preciso ir além da sobrevivência. É preciso criar condições para viver plenamente. E para viver plenamente as mulheres negras não podem mais negar sua necessidade de conhecer o amor”.
Acredito que Beyoncé já tenha tido contato com as obras de Toni Morrison e bell hooks, e até que dialogue com elas. Independentemente disso, suas músicas (principalmente o nesse novo álbum) exaltam amor interior, autoestima, independência, liberdade sexual. Quando a ouvimos falar em primeira pessoa, nós nos apropriamos de seu discurso, que, por tudo isso, é essencialmente político, e não só dançante.
A feminista e ativista Emma Goldman (1869-1940) declarava “se não puder dançar, não é minha revolução”. Na música Church Girl, Beyoncé avisa: “Assim que eu entrar nessa festa, eu vou soltar esse corpo, vou me amar/ Ninguém pode me julgar além de mim/ Eu nasci livre”.
Beyoncé nos convoca para o renascimento e para o amor na pista de dança. Me sinto pronta!