Michele Rocha vive em Betim, região metropolitana de Belo Horizonte (MG). Sua casa não foi atingida pelas fortes chuvas que castigaram boa parte do Estado nas duas primeiras semanas do ano. Ainda assim, as enchentes invadiram sua rotina. Em um dos intervalos na entrega de água e outros itens para desabrigados, ela diz: “Minha casa está servindo de abrigo. Tem vizinhas que perderam tudo, não deu tempo de salvar nada.”
A Defesa Civil aponta que, dos 853 municípios de Minas Gerais, 384 seguiam em estado de alerta até a manhã desta quinta-feira, 20 de janeiro
Integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Michele ajuda na arrecadação de alimentos e kits de higiene para as famílias. “Teve mutirão”, diz. “Graças a Deus o povo é muito bom. A gente foi tirando as pessoas da casa. Agora, temos cerca de 200 famílias desabrigadas, 30% delas perderam tudo, porque a água subiu muito rápido de sábado para domingo à noite”, conta.
‘Estou arrasada’ — Desde o dia 8 de janeiro, a dona de casa Maria Luiza da Silva está sendo acolhida por Michele. A chuva alagou sua casa tão rápido e com tanta força que só deu tempo de ser socorrida pelos vizinhos. Sua irmã e o filho também foram salvos.
“Não tive tempo de tirar minhas coisas. Tudo que você pensa que uma mulher tem em uma casa: coisas materiais, roupa, eu perdi tudo. Dessa vez, foi de arrepiar o cabelo. Estou arrasada”, diz Luiza. “Não sei quando vou conseguir organizar [a casa], que está trincada. Eu não sei o que fazer, se devo voltar pra ela ou não, porque tá numa área bem de risco.”
Recorde de municípios em estado de emergência No dia 14 de janeiro de 2022, o relatório divulgado pela Defesa Civil do Estado incluía Luiza entre os 35.815 desalojados por causa das chuvas em Minas. Ou seja, até o dia 14, quase 36 mil pessoas tiveram de sair de suas casas, deslocando-se para endereços de amigos ou parentes. Eram 25 mortos e 4.464 desabrigados — esses são os que precisam de abrigo público, porque suas moradias estão ameaçadas ou foram condenadas. O número de municípios em estado de emergência é o maior em oito anos: 376
Depois da chuva, o medo continua — Bárbara Israel de Souza mora em Santa Luzia, também na região metropolitana de Belo Horizonte. No dia 9 de janeiro a família se desesperou ao ver que a casa estava rachando. “A área da churrasqueira trincou totalmente até chegar no beco, que também cedeu depois de dois dias”, conta. “A minha casa não foi tão abalada, mas deu algumas rachaduras. Vamos chamar a Defesa Civil para dar uma olhada para ver se interdita ou não. O lote da minha família está todo parado e interditado, porque, como o barranco desbarrancou tudo não tem como passar”.
Até a finalização desta reportagem, a Defesa Civil ainda não tinha feito a vistoria na casa de Bárbara.
‘Ajoelhei e comecei a rezar’ — Em Nova Lima, a situação não está diferente. No sábado, 8 janeiro, Rosilene Fernandes de Oliveira viu as ruas em volta de sua casa transbordarem de água cheia de lama. “Quando a água começou a entrar na minha casa, botei meu joelho no chão e comecei a pedir a Deus misericórdia”, diz.
Naquele dia, a barragem da Ilha do Pau Branco, da empresa de siderurgia Vallourec, transbordou e tomou boa parte da cidade e das vias de acesso. Com o sinal vermelho acionado, muitos moradores saíram de suas casas para evitar uma tragédia ainda maior. Assim, além dos alagamentos por causa das chuvas, também há o risco de rompimento de barragens, algo que a população do Estado já vivenciou em outros períodos.
Rosilene vive na região há oito anos e diz que nesse tempo todo nunca tinha visto nada igual, mesmo vivenciando outros períodos de chuva por ali — sua casa fica em um lugar que já foi uma lagoa. Uma lagoa que, depois de ser soterrada, recebeu muitas moradias.
“Tava aquela chuvinha fininha, aí piorou mesmo. No sábado para domingo, eu fiquei acordada a noite inteira, com medo do rio chegar na gente e não ter como correr”, conta. “Aí ajoelhei meu joelho no chão, minha filha. Fui orar. Fui pedindo a Deus, fui pedindo a Deus. Foi quando acalmou, mas o rio chegou até em cima da rua.”
No dia 11 de janeiro, quando fizemos a entrevista com Rosilene, as chuvas tinham cessado e o nível da lagoa havia baixado. As goteiras em sua casa persistiam, mas a dona de casa já tinha conseguido limpar o barro que tomou a cozinha. “Agora eu tô aqui, limpando. Limpando as coisas que sujaram. Graças a Deus a chuva acalmou um pouco, a lagoa está baixando. Está pingando tudo, molhando, mas dá pra secar.”
Durante dois dias, Rosilene e seus vizinhos ficaram sem energia. Ela, que é diabética, teve receio de perder a insulina, que precisa ficar refrigerada. Outro temor é a contaminação das águas, depois das chuvas. “A gente fica com medo de ficar tomando essa água, que é de cisterna. E aí pode estar contaminada. Todas as fossas daqui explodiram. Saltou tudo pra cima. Tinha que ver que terror que foi. As fossas enchendo e o solo jogando tudo pra cima”, diz a moradora. As doações de água e outros itens essenciais começaram a achegar só na terça, dia 11 de janeiro, porque antes a rodovia estava interditada.
‘Até quem tem medo entrou na água’ No dia 25 de janeiro, completam-se três anos do crime de Brumadinho, quando a Barragem do Feijão rompeu e matou 262 pessoas. Para além das mortes, toda a população que vive nas margens do Rio Paraopeba, que pega parte da região metropolitana de BH, também foi atingida. As sequelas persistem até hoje nos problemas de saúde e na contaminação do solo. Assoreado é o adjetivo que os moradores de Betim usam para descrever o Rio Paraopeba desde o rompimento da Barragem do Feijão. Ele está raso e contaminado por restos de minérios que também se misturaram com as águas das chuvas desta semana. Em Betim, Michele Rocha, conta que, mesmo quem tem receio da contaminação entrou nas águas para resgatar vizinhos ou móveis de casa. “A dificuldade hoje é maior, porque o rio está assoreado por causa da lama do crime”, diz Michele. A palavra “crime” aparece no relato de Michele e de outras entrevistadas, já que entendem assim o que ocorreu ali. “E essa água é contaminada. Mas dessa vez foi tão estrondoso que ou entra ou perde tudo." As barragens também tiram o sono de Arlete Custódia Ferreira, em Itatiaiuçu. Ela conta que ali, onde as chuvas derrubaram pontes deixando pessoas ilhadas, o maior receio é o do rompimento da Barragem Serra Azul, da mineradora ArcelorMittal. Há anos moradores pedem por indenizações no local. “A gente está com muito medo. Recebemos ajuda de vizinhos e do poder público. Mas estamos muito tristes. Além das chuvas que enfrentamos, também precisamos brigar com multinacionais como a ArcelorMittal”, diz Arlete.
Nota do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) A organização afirma que os eventos climáticos que estão acontecendo em Minas Gerais são agravados por condições climáticas adversas, mas também “são aprofundados pelo interesse da especulação imobiliária, da mineração, dos empreendimentos de geração de energia, de uma agricultura predatória e de outras iniciativas que priorizam o lucro”. A nota aponta também que todas essas instâncias encontram a conivência do governo. “Isso acontece quando o poder público negligencia questões ambientais relevantes e posterga o investimento em soluções para problemas tão recorrentes. A situação vivida pelas cidades alagadas em Minas Gerais é agravada pela falta de políticas públicas básicas e de defesa social capazes de garantir moradia, saneamento e obras que evitariam tragédias ambientais, aponta o movimento. Segundo as mulheres ouvidas pelo Nós, Mulheres da Periferia, a ajuda que receberam chegou diretamente de seus vizinhos e movimentos sociais.
Outro lado Segundo a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese) e a Coordenadoria Estadual de Defesa Civil de Minas Gerais (Cedec), o governo liberou mais de R$ 1,2 milhão para a aquisição de cestas básicas, kits de higiene pessoal, limpeza, colchões e kits de dormitório. “Até o momento, mais de 10 mil itens de ajuda humanitária foram entregues aos municípios para assistência à população nas regiões atingidas." Foi criado um Comitê Gestor de Medidas de Prevenção e Enfrentamento das Consequências do Período Chuvoso. O grupo recebe apoio das Forças de Segurança e secretarias de Estado para dar apoio aos municípios atingidos. O governo estadual anunciou R$ 560 milhões para a realização de ações nas cidades atingidas pelas chuvas do último período e solicitou R$ 940 milhões ao Governo Federal.