‘Via Ápia’, o novo livro do autor expõe violências vividas na periferia pelo olhar da comunidade; A obra discute guerra às drogas no Rio de Janeiro, o racismo e os impactos da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) aos moradores da Rocinha
Vanessa Ramos
O escritor carioca Geovani Martins, 31 anos, movimenta a literatura brasileira há pelo menos quatro anos, momento em que alçou voos mais altos, a partir da coletânea de contos “O Sol na Cabeça” (Companhia da Letras), publicada em mais de dez países. Nascido em Bangu, zona oeste do Rio de Janeiro, vive hoje em um apartamento em São Conrado, “a poucos passos” da Rocinha, comunidade onde foi morador e inspirou seu novo livro lançado em 2022, ‘Via Ápia’, pela mesma editora.
Antes de se voltar com maior exclusividade à escrita, sobreviveu de várias formas. Trabalhou como garçom, atendente de lanchonete, ‘homem placa’ e em barraca de praia, espaços que de algum modo foram um laboratório para a escrita que iria se desenvolver.
A nova obra de Geovani carrega o nome da principal rua comercial da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. A história é entrelaçada pelas narrativas de cinco moradores, entre os anos de 2011 e 2013, quando ocorreu a instalação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP).
Segundo o autor, o livro vai na contramão de uma “narrativa de pacificação da favela” construída por veículos comerciais de comunicação e reproduzida por nichos sociais que, de acordo com ele, pouco ou nada sabem sobre o impacto da atuação policial aos moradores da comunidade.
Ao falar sobre o estilo literário de sua obra, afirma sua identificação com a cultura africana. Explica que a escrita que vem desenvolvendo se aproxima dos ‘griots’, dos contadores de história africana, tidos como guardiões da memória que tinham na oralidade a ferramenta para transmitir conhecimentos.
“Comecei a entender que a literatura, a linguagem escrita, está sempre um passo atrás da linguagem oral. Como está atrás, me resta perseguir esse ritmo, essa língua, essa maneira de contar, de comunicar. Faço uma literatura ligada à contação de história e à maneira como isso reverberou a partir da diáspora africana”, afirma.
Além do carioca Lima Barreto, ele cita entre suas referências e inspirações os escritores Chinua Achebe (nigeriano), Chimamanda Ngozi Adichie (nigeriana), Abasse Ndione (senegalês) e Bell Hooks (estadunidense).
Confira, a seguir, a entrevista com Geovani Martins ao Expresso na Perifa:
O que Via Ápia busca despertar em sua literatura ao trazer temas sociais como a chegada da UPP na Rocinha?
Construir uma memória coletiva do que foi aquele momento. Através de muitas histórias, ilustrar esse processo da chegada dos policiais na Rocinha e a consequência prática na vida dos moradores. Faço um mosaico dos cinco personagens e as perspectivas que se cruzam para trazer diferentes formas de sentir e de atuar nesse período. Não são histórias narradas nos programas de televisão, nas páginas policiais dos jornais, sobre os grandes traficantes ou os comandantes da polícia. São histórias de jovens trabalhadores que estavam em um período de formação e que tiveram suas vidas reconfiguradas a partir dessas mudanças pelo fato de habitarem o território e pertencerem ao grupo mais marginalizado de todo esse processo.
Quais são as mensagens trazidas pelos cinco personagens? O que inspirou a escrita dessas tramas?
Esses personagens são arquétipos de uma série de temas que queria comunicar com esse livro. Para construir as suas personalidades, recorro a figuras de meu convívio, a mim mesmo, aos meus irmãos, primos, amigos. O personagem que está no Exército me permite falar como o Estado também coopta corpos negros jovens para usar como braço armado que vai reprimir o território. Tem outro personagem que deseja ser tatuador, que ajuda falar sobre a nossa juventude que precisa ter um sonho diante de perspectivas nubladas. Tem o traficante branco que vende na pista, que ajuda a refletir sobre como é tratado o tráfico de drogas entre brancos e negros na pista e na favela. Tem o personagem do Wesley que trabalha na casa de festas e começa a ter problemas com abuso da cocaína, que ajuda a falar sobre o consumo e a repressão, como também sobre as situações psíquicas e financeiras que contribuem para que algumas pessoas passem dos limites no uso de certas substâncias. E tem o Washington, que faz o contraponto, que trabalha e consegue usar drogas com maior responsabilidade. Os dois me permitiram falar sobre como a repressão às drogas é algo mais violento e perigoso do que o próprio consumo. Por mais que o consumo muitas vezes possa passar dos limites, ainda há chances de redenção, de reeducação. Na guerra às drogas, a situação pode ser irreversível.
Por que escolheu a Rocinha como cenário do livro?
Têm dois motivos principais. Um é porque morei ali nesse período, o que me ajudava a evocar certas memórias e o sentimento em volta. O segundo é essa espécie de paradoxo com a chegada da UPP. A gente vivia um momento em que o tráfico de drogas era administrado pelo Nem, o Antônio Francisco Bonfim, que tinha uma preocupação e uma intenção de não ter conflitos armados. Não havia muitos tiroteios na Rocinha, talvez um ou dois em todo esse período, algo pontual. Chega uma outra política, a de Estado, chamada Unidade de Polícia Pacificadora, leva mais de 500 policias para ‘pacificar’ a Rocinha – que passam a morar lá. Começam a existir confrontos armados com uma frequência grande, chegando a ter quatro por semana. Um paradoxo grande para se pensar: como é que a UPP traz conflitos armados em oposição a um traficante, fora da lei, que fazia esforços financeiros e diplomáticos para manter o lugar sem conflito com a polícia ou outras facções? São questões não abordadas pela mídia.
Como vê a postura da imprensa comercial naquela ocasião?
A mídia criou uma narrativa de pacificação, de sucesso dessas operações e vendeu isso. Passei a pensar sobre o poder dessas narrativas. O livro de alguma forma é uma resposta a essa narrativa criada, que não ouviu as pessoas que moravam ali, que não conseguiu perceber esses paradoxos que busco apresentar.
Como a juventude da comunidade é vista pelo Estado?
A criminalização da juventude da comunidade é algo estruturante. Isso em todos os espaços, no ônibus, na praia, no shopping, indo ou voltando do trabalho. Essa juventude é parada e revistada. Para eles, todo mundo que está ali é um potencial vendedor de drogas, um traficante. Isso é estruturante da Polícia Militar, ela enxerga assim essas pessoas, essa juventude. E existem diferenças no tratamento entre brancos e negros dentro da própria favela, o que motivou trazer Biel como personagem branco no livro.
Por exemplo, lembrando do período de intervenção militar, em 2017, quando morava lá: eu e meu irmão chegamos a ser parados 4 ou 5 vezes no mesmo dia pelo Exército. Um amigo de infância, branco, não foi parado nenhuma vez durante todo o período. Então a gente vê como a polícia age. Qual é o trabalho dela? Controlar essas pessoas. A resposta é muito longa para caber aqui…
O que gostaria de complementar sobre a atuação da polícia?
A Polícia Militar é herança de uma primeira polícia depois da República, que criminalizou a população negra, o violão, a capoeira e qualquer coisa que tem a ver com a cultura negra. Porque era importante que esses homens fossem tachados como perigosos, vistos assim. Essa era a forma mais potente de impedir o desenvolvimento dessas pessoas. O Brasil foi feito com políticas e filosofias eugenistas, um pensamento que permanece até hoje. Por isso, falando sobre perspectivas, muita gente não se sente bem fora da favela, por causa dos olhares que vai receber da sociedade, por causa da postura e do tratamento que vai receber dos policiais. Muita gente tenta trabalhar e estudar no morro e viver a vida toda ali dentro, o que limita a perspectiva. São várias as formas de encarceramento.
Você trata sobre outras formas de violência no livro…
Busco falar também de outros prismas, do presídio, da negligência no hospital, outros tipos dessas políticas de mortes que vêm se repetindo com a população negra desde a fundação no Brasil. O que acontece quando chega a UPP, por exemplo: se coloca uma porrada de policial dentro de um território sem nenhum treinamento. Não se fala: ‘olha, você está chegando no bairro dessas pessoas, essas pessoas moram aí, você não está chegando no meio de uma guerra, onde todo mundo é seu inimigo.’.
Como vê a guerra às drogas nas comunidades?
A gente precisa começar a pensar de fato em um processo da legalização das drogas por questões de saúde, financeira e de liberdade individual. A guerra às drogas é a principal desculpa para o genocídio que a gente vê Brasil afora. Nenhum outro país do mundo mata um jovem negro a cada 23 minutos. Nem no auge do apartheid na África do Sul havia isso. Nos últimos quatro anos, com o governo Bolsonaro, isso piorou bastante. É uma questão que precisa ser resolvida urgentemente. Isso tem a ver com essa ferramenta de controle e destruição, que é a polícia promovendo uma guerra às drogas que, na verdade, não é contra as drogas. Porque vemos filhos de desembargadores sendo pegos com 150 quilos de maconha e fuzil e sendo liberados em seguida. São vários exemplos de que o uso das drogas e das armas não significa nada para os juízes. Enquanto isso, vemos uma série de matanças assassinas com essa desculpa de que estão combatendo o crime organizado e as drogas nas favelas.
Além dos dramas, da política de guerra às drogas, paixões, invasão da UPP, racismo, entre outras questões, você também aborda os bailes funks. Qual mensagem quis passar sobre o tema?
O baile funk já nasce criminalizado. O funk começa a ser assimilado no final dos anos de 1990, artistas começam a ir para a televisão, mas nunca deixou de ser criminalizado. Vimos pessoas ligados ao funk sendo presas como MC Smith ou DJ Rennan da Penha. No momento em que a UPP chegou, isso foi muito forte. Uma vez conversando com MC Leonardo, ele me falou que nenhum dos bailes continuavam existindo. Isso me deixou chocado e triste. Um Estado que não leva biblioteca e nenhuma forma de cultura e lazer para esses territórios e ainda tem a coragem de reprimir a manifestação cultural feita na favela para a própria favela.
A Rocinha tem mais de 100 mil habitantes e a primeira biblioteca foi inaugurada em 2011, mas não é suficiente. Foi aberta em 2011, fechou em 2016 e voltou agora toda sucateada. O ar condicionado não funciona, não tem sistema para emprestar livro, não tem infraestrutura para fazer limpeza e manutenção; está tudo enferrujado, ruindo. É esse tipo de Estado que estou falando, que só leva ‘bala’ para a população, polícia, UPP. Parece que o Estado só pode entrar para promover a guerra. A questão do baile funk dá raiva porque é de uma violência simbólica e objetiva.
O Estado entra para criminalizar o momento de êxtase dessa juventude, em que você consegue ser livre na dança, na paquera, no que for. Foi importante colocar no livro como isso acontece e a potência do funk como movimento cultural e estético também.
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