No dia 30 de novembro de 2021, um jovem negro de 18 anos foi preso pela polícia militar de São Paulo sob acusação de dirigir uma motocicleta sem habilitação e tráfico de drogas. Ele carregava 11 tabletes de maconha. Poderia ser mais uma entre as muitas prisões que alimentam o monstro da terceira maior população prisional do mundo, mas um fato marcou essa prisão. O jovem foi algemado à motocicleta do policial e arrastado pela Avenida Professor Luiz Ignácio de Anhaia Mello, na Vila Prudente, zona leste de São Paulo, até a 56ª delegacia de polícia.
Você deve ficar surpreso ou surpresa com o absurdo, certamente. Uma cena medieval em pleno século 21. Porém a cena não se resume a isso, fato é que a atitude do policial é criminosa, seja pelo abuso de autoridade ou pelo crime de tortura praticado contra o acusado. E a pergunta que fica é, como um servidor público (oficial da PM) se sente confortável para praticar o crime de tortura à luz do dia em uma via pública? E a resposta passa por duas questões: o acusado era negro, o acusado era ”traficante de drogas”.
A pergunta é: como um oficial da PM se sente confortável para praticar o crime de tortura à luz do dia em uma via pública? E a resposta passa por duas questões: o acusado era negro, o acusado era ‘traficante de drogas’
Pesquisadores da política de drogas têm afirmado há anos o quanto a política proibicionista executada no Brasil — e no mundo — é totalmente equivocada no combate ao consumo de substâncias entorpecentes e também ao seu comércio. Do ponto de vista financeiro, o projeto Drogas: Quanto Custa Proibir, coordenado pelo Centro de Estudos e Cidadania (Cesec), aponta a ineficiência financeira da política proibicionista, que, só por causa do cenário de crise econômica e teto de gastos, já poderia ser questionada pela sociedade.
Estratégia de (in)segurança — Do ponto de vista da estratégia de (in)segurança pública implementada para coibir o comércio varejista de drogas — nas periferias do Brasil não há tráfico, há comércio varejista de drogas, executado por franquias operacionais de facções criminosas a partir da ocupação territorial desses espaços, tráfico acontece nas fronteiros, portos e aeroportos —, a política proibicionista se pauta pelo confronto bélico e a aniquilação do “inimigo”.
Do ponto de vista da estratégia de (in)segurança pública implementada para coibir o comércio varejista de drogas, a política proibicionista se pauta pelo confronto bélico e a aniquilação do ‘inimigo’
E esse ponto é essencial para entender como chegamos a ver, em plena democracia, mais uma cena de barbárie executada pelas polícias do Brasil. Isso acontece uma semana depois de a Polícia Militar do Rio de Janeiro matar nove pessoas em uma operação na favela do Salgueiro, região metropolitana; isso acontece no mesmo ano da maior chacina realizada no estado do Rio de Janeiro, quando a Polícia Cívil matou 28 pessoas na favela do Jacarezinho, zona norte da cidade. Acredite, tudo isso tem muito em comum com o caso do rapaz arrastado em São Paulo.
O ponto é: “guerras às drogas” não é uma força de expressão. O Estado brasileiro internalizou o conceito de “guerra” quando o assunto é coibir o comércio e consumo de algumas substâncias entorpecentes. Obviamente essa prática só se aplica contra grupos e territórios específicos. Afinal, não há guerra às drogas na Barra da Tijuca ou nos Jardins, ainda que lá exista venda e consumo tal qual nas periferias.
E toda guerra precisa de um inimigo, e contra o inimigo vale tudo. E o Estado brasileiro naturalizou que temos um inimigo interno, e esse inimigo tem cor, CEP e gênero. Jovens, negros, de períferias. Um ponto interessante é, a constituição brasileira proíbe pena de morte, exceto, em caso de guerra. Obviamente a guerra aqui não é a “guerra às drogas”, mas a guerra entre nações. Entretanto, o conceito do inimigo se mantém. Na lógica brasileira, homens e mulheres de outra nação que eventualmente esteja em guerra com nosso país é tão inimigo quanto o sujeito que vende drogas nas esquinas e vielas, e contra eles, na lógica da segurança pública belicosa, pode tudo, até a pena de morte. Como foi feito nas chacinas mencionadas acima.
Mas como isso explica o caso do rapaz negro arrastado em São Paulo? Eu explico. A ideia do inimigo tem por trás uma lógica desumanizadora. O “inimigo” é uma figura tão perversa, tão distante da nossa realidade de “cidadãos de bem” que cumprem as leis, que tiramos dele a sua humanidade. Assim sendo, contra ele vale tudo. E esse “vale tudo” tem como ponto de partida a possibilidade de cometer crimes na busca de evitar que eles cometam crimes. Em busca de evitar um “mal maior” cometemos um “mal menor”. Mas reflitamos, a apreensão de um quilo ou uma tonelada de droga vale a vida de alguém?
No estado democrático de direito certamente que não, mas como muito bem sabemos, a democracia brasileira só vale para alguns. É aí que entra a lei de drogas, separando os humanos dos desumanos, o criminoso do inimigo. Eu me sinto confortável em afirmar, se o jovem preso tivesse cometido qualquer outro crime que não fosse tráfico ele não teria sido arrastado pelas ruas de São Paulo. Mas ele era traficante, traficante é inimigo e contra o inimigo pode tudo, até a tortura à luz do dia em via pública.
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