O que leva um homem a bater em uma mulher? Como é ser menino na periferia? Por que discutir masculinidades é tão importante? Essas são algumas das perguntas que movem a atuação do coletivo Masculinidade Quebrada, do Grajaú, na zona sul de São Paulo
Reportagem de Riviane Lucena, Embarque no Direito, em São Paulo
Sempre que um caso de agressão doméstica repercute na sociedade, na imprensa e na vizinhança, de um lado são ouvidas reações de protesto e acolhimento da vítima, além de posicionamentos combativos diante do indefensável. E há quem diga “homem é assim mesmo”; “ele é louco”; “em briga de marido e mulher…”; “é o jeito dele…”; “o que foi que ela fez…?”.
Mas de onde vem, afinal, esse tipo de violência, que lugar ocupa na vida em sociedade e o que é possível fazer para que as masculinidades não sejam tóxicas?
A teoria behaviorista da psicologia diz tudo que uma pessoa faz é aprendido. Desde os primeiros dias de vida. Tudo. Aprende-se por ensinamento direto e indireto. Na escola; na convivência com amigos e familiares; por meio de exemplos. Matemática na sala de aula, palavrão com o coleguinha de brincadeira, gestos violentos, muitas vezes, dentro de casa. Assim, comportamentos são imitados, reproduzidos, repetidos e padronizados. Quanto mais se repete uma ação, mais “normal” — entre aspas, mesmo — ela se torna e, por isso, é difícil ter distanciamento suficiente para ver algumas coisas de forma crítica. Fazer esse questionamento, porém, pode salvar vidas.
Pensando em toda essa problemática, foi fundado em 2018 o coletivo Masculinidade Quebrada, que trabalha na região do Grajaú, extremo sul de São Paulo, temáticas fundamentais sobre o significado da masculinidade, da paternidade, do papel da infância na formação de meninos e homens. Tudo começou em rodas de conversa em um Centro para Crianças e Adolescentes (CCA), um espaço de convivência municipal. Rede de afeto, sexualidade, violência do estado e principalmente violência de gênero eram (e ainda são) assuntos abordados nas conversas.
A partir daqueles primeiros encontros, os meninos relataram que passaram a compreender melhor sua relação com pai, mãe, irmãs e outras mulheres. O Masculinidade Quebrada — Memórias de um Processo com Meninos Periféricos, ilustrado porCauã Bertoldo, é um dos resultados desse estudo. A ideia era também criar uma identidade de homem coletivo, e fazer com que os jovens entendessem que as questões de uns era também dos outros, que o problema do machismo não era pessoal — ainda que seja fundamental cada um fazer a sua parte, isso não basta. A reflexão precisa ir além. Com o tempo, os adultos também passaram a ser ouvidos em discussões.
“Normalmente, quando um homem agride uma pessoa de outro gênero, se diz que isso não é postura de homem”, diz o educador Rafael Cristiano, que tem 29 anos. “Mas é [postura de homem], porque a gente é o quinto país do mundo que mais mata mulher cis, e o primeiro que mais mata mulheres trans, então existe, sim, uma questão transversal que parte da identidade de ser homem. Essa é a premissa.” Nesse sentido, e partir da compreensão e da autocrítica, é que o indivíduo consegue perceber o que precisa ser repensado e transformado. “O Brasil importou do colonizador a ideia de ser homem e mulher, e ainda traficou outras pessoas de outro continente que também tinham a sua forma de viver. Esses corpos têm de se enquadrar em um padrão de comportamento que não é construído a partir da necessidade deles”, afirma o educador e co-fundador do Masculinidade Quebrada.
Segundo Rafael, não é com uma ideia de “desconstrução” que esse caminho deve ser traçado. “A desconstrução não existe e não deve existir, já que não existe um lugar de homem ideal. Deve, sim, haver um lugar de práticas pequenas que devem ser transformadas, e uma construção cotidiana, constante, diária, até o último dia de vida. Eu preciso sempre estar refletindo minha ação no mundo e isso é para a vida toda”, conclui.
SOBRE O MASCULINIDADE QUEBRADA O coletivo foi fundado em 2018. Por meio de rodas de conversa, a ideia era pesquisar e fomentar o debate sobre o que é ser homem e menino periférico no Grajaú, zonal sul de São Paulo. Os fundadores desse grupo de estudos, em sua maioria, nasceram ali: Belchior Divina Emídio, palhaço e educador observador de rodas de masculinidades, Rafael Cristiano, que é ator, dramaturgo e educador de gênero e sexualidade, o psicólogo e mestrando em Psicologia Social pela USP Raul Gomes e a também psicóloga Elânia Francisca, mestra em Educação Sexual e doutoranda em Humanidades, Direito e outras Legitimidades, pela USP. Uma metodologia própria facilita encontros com adolescentes em escolas públicas dos bairros do distrito. Em paralelo, são feitas discussões abertas ao público. Atualmente as atividades, por causa da pandemia, ocorrem em ambiente online. saiba mais no instagram do coletivo
SOBRE OS CCAs O Centro para Crianças e Adolescentes é um serviço de proteção social básica da prefeitura de São Paulo. Trata-se de um espaço de convivência que oferece atividades para quem tem de 6 a 14 anos (e 11 meses). Instalados em centros de referência de assistência social, os CCAs têm programação montada a partir de "interesses, demandas e potencialidades dessa faixa etária".
- Conheça o coletivo Masculinidade Quebrada e suas atividades
- Livro: Masculinidade Quebrada — Memórias de um Processo com Meninos Periféricos (Ilustrações de Cauã Bertoldo)
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