Moradora do Grajaú, periferia da zona sul de São Paulo, a diretora de arte e multiartista Fernanda de Souza Ribeiro, de 26 anos, acha que a favela e as meninas que frequentam bailes funk não são valorizadas como deveriam. Para ela, o que acontece na prática é a criminalização dos movimentos, sobretudo das mulheres. Movida por esse questionamento, Fernanda articulou um ensaio audiovisual que coloca o funk e a diversidade das garotas em um espaço que o senso comum costuma negar: o mundo da moda.
Em dezembro de 2021, ela colocou na rua o editorial de moda Essas são as Meninas que os Menino Gosta 011 (clique para ver). Fernanda idealizou o produto junto com uma equipe composta por 90% de mulheres. São dela a direção de arte, a criativa e o stylist.
O título é referência à letra de MC Menorzinha:
Chique elegante sempre dos pés à cabeça / cheia de malandragem e linda de natureza / O tipo de menina que vai te deixar bem / Essa é a nova da menor nois não paga pau pá ninguém
O objetivo principal da produção, conta Fernanda, é a valorização do funk. “Mostro a cultura enquanto moda e comportamento de dentro, valorizando nosso rolê, nossas histórias e dando autoestima”, diz. “Tudo isso porque na moda não somos vistos e, quando olhados, somos sempre alvos dos esteriótipos. Tentamos introduzir isso como moda brasileira paulista, que seja assunto recorrente nas revistas, nas campanhas e nos recebidos.”
Outro objetivo é demonstrar que as modelos e os profissionais dedicados estão na cena funk e podem atuar no mercado da moda e em outras áreas, inclusive a própria Fernanda. “Mostrar para as marcas, revistas e mídia que sei trampar. Isso é um portfólio e, por mais que lindo, é doloroso porque sai do meu bolso”, comenta. “É o que chamamos de autoral; trabalhar com o que acreditamos, mas também impulsionar nosso nome no mercado”, explica.
O game no capitalismo é esse. Também quero ter qualidade de vida e viver do meu trampo como qualquer um. Então eu tô aí, com meu pessoal, mostrando para as marcas e afins que nois é artista. Que se eles fizerem acontecer, e se eles nos valorizarem em vida, e pagar por isso, o trabalho deles também vai crescer. Não posso deixar de dizer que é até melhor do que só nos usar de referência
O funk ainda não é valorizado Sobre o funk e seu reconhecimento como potência artística, Fernanda é incisiva: a sociedade só reconhece quando é conveniente. Empresários e mercado, de modo geral, consideram o movimento funk somente quando isso se reverte em dinheiro, afirma. E, ainda assim, não remuneram nem contratam quem é da “cena”, e sim modelos de outros segmentos e pessoas que não vivem na periferia ou frequentam bailes funks, a quem Fernanda chama de “elementos suavizados” e “pessoas que, às vezes, andam com a gente, mas não são a gente”
Todo mundo é do funk — No editorial de moda produzido por Fernanda todas as envolvidas e os envolvidos frequentam os fluxos. Foi nos bailes, aliás, que as meninas foram selecionadas. Nas festas, Fernanda observava, conversava e depois seguia nas redes sociais. Ela queria que as modelos representassem o máximo possível o conceito para moda e para o funk também.
“Nós não fantasiamos ninguém, chamamos as pessoas que colam no baile mesmo. Que curte umas marcas no dia a dia e, diga-se, pode sofrer enquadro policial por isso”, afirma. “A mina que gosta de ir pro Brás [bairro de comércio popular em São Paulo] comprar cropped e calça cintura alta, [calça] skinny e afins. Sacou? Tem conceito e detalhes artísticos? Tem, mas tudo isso aplicado à realidade”.
A maioria da favela é negra — Das seis modelos do editorial, cinco se consideram negras. Fernanda diz que isso não foi de propósito. “Tenho consciência racial, me vejo com responsabilidade em comunicar isso. O que eu quero dizer é que, na favela, a maioria das pessoas são negras”, observa. “Muitas não se reconhecem como tal porque temos um embranquecimento doloroso que faz com que muita gente não saiba sua história ou queira negar traços e afins.”
Ao fazer um trabalho como esse, Fernanda acredita que reforça, dentro e fora do funk, a importância de pensar nas pessoas negras e de mostrar isso para fortalecer o protagonismo dessa população. “O racismo é forte no nosso rolê também. Você acha que jogador e MC com mulheres brancas começam onde? Então, sem julgar meninos negros e excluir pessoas brancas, porque elas existem na quebrada também, faço minha parte, vou plantando ideias para todos nós, com afeto e trabalho lindo”, diz. “Fala por si só, tá ligado?”.
Baguio bombou — Com mais de 86 mil visualizações, até a publicação deste texto, e milhares de curtidas nas redes sociais, Fernanda olha para o projeto e diz que o “baguio bombou”. De olho nos próximos passos, espera que a equipe envolvida seja chamada para campanhas e outros trabalhos.
É portfólio. Quero viver do meu trampo, como uma multiartista que sou. (…) Não sou a solução de problema nenhum e nem quero ser, mas faz parte da minha brisa comunicar de forma mais afetiva e honesta possível
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