Você sabia que a Constituição Federal do Brasil completou 33 anos no último 5 de outubro? A Constituição, documento mais importante do País e lei máxima e obrigatória entre todos os cidadãos, serve de garantia de direitos e deveres.
A confecção da carta magna de 1988, a primeira a reconhecer o racismo como crime, foi um dos primeiros processos em que a sociedade brasileira realmente participou durante a redemocratização. Para os movimentos progressistas, não existia a menor condição de transitar para uma nova sociedade com um documento dos tempos ditatoriais (1964-1985).
Antes dela, as leis eram criadas sem ouvir a população. Mas no processo que levou à promulgação da Constituição, que durou 583 dias, pelo menos 10 mil pessoas passaram diariamente pelo parlamento. Estima-se que 9 milhões estiveram no Congresso Nacional, sem contar caravanas, cartas e outras formas de se manifestar e fazer sugestões.
Para entender melhor a história da Constituição pelo olhar dos militantes negros — e quão importante foi essa participação para a garantia de direitos básicos —, o Expresso na Perifa ouviu a pesquisadora Natália Neris, mestra em Direito pela Fundação Getulio Vargas e doutoranda em Direitos Humanos. Em 2018, Natália publicou o livro A Voz e a Palavra do Movimento Negro na Constituinte de 1988 (Editora Letramento).
A gente consegue ver com clareza que a tarefa da geração anterior à nossa era desmantelar o ideário de democracia racial, e falar claramente sobre desigualdades raciais
Expresso na Perifa — Como foi a atuação dos movimentos negros na Assembleia Nacional Constituinte?
Natália Neris — Para começar, precisamos dar um passinho para trás, para entender por que esse momento é importante e por que a elaboração de uma nova Constituição é importante para a história do Brasil.
Muitas vezes, ouvimos a expressão Constituição Cidadã. Há um motivo para ela ser chamada dessa maneira. A Constituinte foi o primeiro evento do Estado brasileiro no qual a sociedade civil foi chamada a participar. Aliás, a sociedade civil lutou muito para que isso acontecesse de fato. Essa foi a primeira vez que isso aconteceu durante todo o nosso período republicano.Todas as políticas públicas, todas as leis, elas vinham de cima para baixo. Todos os acordos e constituições que tivemos foram assim.
Tivemos um período muito complicado da história, a ditadura civil-militar, que começou em 1964. Quando esse regime começou a dar sinais [de que estava acabando], e de que teríamos uma transição para a democracia, muitos atores da sociedade civil diziam: ‘não podemos transitar para um novo regime com uma constituição escrita no período da ditadura e que não reflete os anseios da população brasileira de fato’.
Era preciso um texto novo, um acordo novo.
Quando eu ouvia na faculdade sobre sobre a Constituição Cidadã, sabia que havia tido uma ampla participação da sociedade civil. Porém, me veio à mente: se teve sociedade civil, se teve movimentos organizados, tinha movimento negro e eu quero entender como esse movimento participou disso, como ele tentou interferir. Mas, na literatura, não encontrei muita coisa sobre isso.
Eu encontrei algumas coisas sobre participação das mulheres na Constituinte, como o “lobby do batom”. Ouvimos também falar sobre indígenas, quanto os indígenas lutaram e conseguiram conquistar até mesmo um capítulo e tantos outros grupos sociais. Houve também todos os grupos que participavam pela saúde, que conseguiram escrever o SUS (Sistema Único de Saúde).
Ficava pensando: se tem todos esses movimentos sociais, deve ter o movimento negro também. Foi aí que eu cheguei neste tema.
Esse momento [da Constituinte] é muito importante para a nossa história. É a primeira vez que, no Congresso Nacional, 10 mil pessoas estavam ali todos os dias tentando entrar, tentando entregar as suas demandas para os deputados. Há registro de que nove milhões de pessoas passaram por Brasília, no Congresso Nacional, nesse um ano e pouco.
Como foi o movimento negro chegou na construção da Constituição?
Houve uma construção histórica, que vem acontecendo ao longo de todo o período republicano. Nós sabemos que no movimento negro há mobilização de pessoas negras lutando por direitos desde o período da escravidão.
A literatura costuma pensar o movimento negro em fases. No período republicano, a gente tem uma fase em que o movimento negro é bastante integracionista, tentando entrar nesta sociedade de classe. Nesse momento, a questão da educação é muito importante. A Frente Negra e a imprensa negra também são elementos muito relevantes nesse sentido.
O que a gente conhece como movimento negro contemporâneo começa a se organizar de diferentes formas, justamente na ditadura militar, com características muito diferentes dos anteriores, porque tem uma faceta de reivindicação mesmo, de entender que o Estado é responsável pela situação da população negra, que as desigualdades não são por acaso, mas frutos da ausência de políticas públicas e de lei.
Esse movimento, assim como toda a sociedade brasileira, está muito efervescente no final da ditadura. Esses atores também se tornam muito ligados a organizações de esquerda, de mulheres, de luta por moradia e por saúde. Estão, naquele momento, espalhados em diferentes frentes, e também tem um movimento cultural muito interessante. No final da década de 1970, a gente vê o renascimento cultural.
Poderia citar alguns exemplos?
Todas aquelas práticas de afirmação de identidade, como os blocos afro, os bailes black, tudo isso vai formando um caldo cultural e político, até a própria imprensa negra que existia lá no comecinho do século ressurge nesse momento, surgindo jornais como o PCNS, o Nzinga e o Tição, entre vários outros.
Todas essas movimentações, culturais e políticas, iam acontecendo ao mesmo tempo, e junto aos partidos de esquerda na reabertura [política]. Na volta do partidarismo, em 1979, esses atores percebem uma necessidade de unificação.
O ato que funda o que a gente conhece como Movimento Negro Unificado (MNU) contemporâneo ocorre em 1978, em plena ditadura militar, sofrendo todos os riscos nas escadarias do Teatro Municipal, em São Paulo, denunciando a violência policial e a discriminação.
E quando é que o movimento negro entende que também precisava estar na disputa da Constituição?
No começo dos anos 1980, quando a sociedade civil e diferentes atores começam a pensar que a Constituição precisa ser participativa. O movimento negro está nessas discussões, próximo de organizações de esquerda. De organizações que estão pensando nisso também.
No início da década, o movimento negro já tinha feito muitos encontros nacionais. Já tinha organizado quais desejos e demandas. Tanto que, em 1986, quando a gente já tem claro que iríamos ter uma nova Constituinte, o Movimento Negro começa a se reunir em fóruns diversos para pensar o que iria levar [demandas].
Esses anos (1986, 87 e 88) marcam um momento bem reivindicativo de um movimento que demanda do Estado e chega aquecido na Constituinte, com muita coisa na mesa e muitas organizações participando.
Fala-se muito que a Constituição de 1988 foi a primeira a inscrever o racismo como crime, colocando essa questão como o grande avanço pautado pelo movimento negro.
A criminalização do racismo é algo muito importante, é a primeira coisa que vem à nossa cabeça quando a gente pensa no que que teve de avanço para a população negra.
De fato, até contando um pouco da minha curiosidade em relação a esse período histórico, eu queria entender por que o movimento negro queria crime, sendo que a gente sabe muito bem que todas as respostas que o judiciário nos dá não são tão efetivas.
Pra mim, fez muito sentido a demanda por criminalização depois que eu comecei a ler os documentos, ouvir os depoimentos dos ativistas, que era exatamente porque a gente vivia num país que negava a existência do racismo. O Brasil era visto como o país das relações raciais harmônicas, da democracia racial. Diziam que o racismo era episódico. O racismo não era visto como um problema social de fato.
E quando o movimento negro fala ‘a gente quer crime inafiançável, imprescritível, o crime mais pesado que existe’ para o racismo, quando no maior texto você tem o racismo como crime, assumiu-se, nacional e internacionalmente, que você tem um problema, uma questão racial para resolver.
Quais eram as outras demandas?
O movimento negro não via a criminalização como única saída ou solução para os problemas. Havia a saída coercitiva, a saída da educação e a saída promocional. Tinha essas três chaves.
Todas as demandas que são estruturais aparecem nas demandas do movimento. É muito injusto chamar o movimento negro de identitário, porque o que colocou mexia na base de políticas sociais relevantes de educação, saúde, trabalho e moradia.
O movimento também olhava para questões de relações internacionais, como o rompimento de relações de comarcas com qualquer país que cometesse regime de segregação, que era ainda muito comum principalmente na África do Sul.
Eu fico pensando que havia um projeto de país, de um jeito muito profundo, que foi pensado e idealizado por homens e mulheres negros nesses movimentos de base, muito diferentes de outras organizações que existiam naquele período
Exemplos de reivindicações dos movimentos negros levadas à Constituição Luta pela reforma dos currículos escolares, para mudar e incluir a contribuição de negros e indígenas na formação nacional; a demanda pelo fim do vestibular, uma forma muito injusta de avaliação para o ingresso no ensino superior; o fim das fundações de menores, chamados então de 'crianças infratoras', porque já se via que essas crianças deveriam ser de responsabilidade da assistência social, e não da segurança pública. Licença-maternidade, regulamentação do trabalho doméstico — algo que as mulheres negras trouxeram, porque o movimento feminista não trabalhava tanto essa perspectiva. A unificação do sistema de saúde. A estatização do transporte público como dinâmica de direito à cidade e a titulação de terras também para negros urbanos, entendendo que todo o processo de desigualdades na ocupação da cidade também tinha uma questão racial.
O que foi inserido no texto constitucional?
A gente inseriu muitas coisas importantes no texto constitucional. Foi uma batalha muito dura, muito difícil de vencer naquele momento, num país que negava a existência de qualquer desigualdade.
Todos os dispositivos que entraram referentes a isonomia, igualdade, igualdade nas relações de trabalho, e mesmo as questões de educação e de cultura, geraram uma base importante para que o movimento negro nos anos subsequentes demandasse políticas públicas e os legisladores comprometidos com esse tema pudessem elaborar leis com base na Constituição.
As cotas se baseiam nesse princípio da isonomia, a Lei de Ensino da História da África (10.639) se baseia no artigo da educação, então, todos esses dispositivos traçaram linhas importantes.
Tivemos 11 congressistas negros, entre eles Benedita da Silva, referência para as mulheres na política e no movimento social.
Muitos ativistas negros que conhecemos hoje tentaram se candidatar como candidatos constituintes, como Edson Cardoso, Abdias Nascimento e Lélia Gonzalez no começo dos anos de 1980. Havia uma mobilização político-partidária forte. A maioria não se elegeu, mas continuou a participar. Os poucos que se elegeram, levaram as demandas durante todo o processo.
O movimento negro lutava para dizer que a gente precisa de política pública. A gente precisa de leis específicas, porque estávamos distantes 100 anos de uma lei [Lei Áurea] que não funcionou. O movimento negro fez muitos discursos durante a Constituinte, dizendo que a Constituição era o parágrafo segundo da Lei Áurea, que aboliu a escravidão mas deixou a população negra sem direitos.
Qual a importância da representatividade política negra?
O Movimento Negro com todas as contradições que isso possa ter e com todos os debates internos que possa gerar, percebeu que a política partidária iria ser muito importante para garantir direitos. Essas candidaturas todas que eu citei, de quadros importantes do movimento negro, dizem muito sobre isso. Há muitos discursos que mostram que, na Constituinte, negros apontavam que não estavam representados. ‘Não estamos aqui. Olha pra essa sala, olha pra essa comissão’. Quando Lélia Gonzalez e Helena Teodoro participavam de audiência pública elas apontavam isso o tempo todo: ‘vocês falam de povo brasileiro, mas quem que é o povo brasileiro, nós não estamos aqui’.
Um estudo da professora Thula Pires, intitulado a Criminalização do Racismo: entre Política de Reconhecimento e Meio de Legitimação do Controle Social dos Não Reconhecidos, publicado pela PUC-RJ, aponta que, dos mais de 500 congressistas, 11 eram negros. Mas, de fato, autodeclarados negros e engajados e comprometidos com a questão racial nós tínhamos quatro: Benedita da Silva, Paulo Paim, Edimilson Valentim e Carlos Alberto Caó. E aí que está a importância deles.
O texto constitucional começou do zero, nas subcomissões. Mas quando ele foi pra comissão de sistematização, a sociedade civil saiu de cena, porque não tem mais audiência pública, encaminhamento de sugestão e ficam só os parlamentares. Assim, eles foram fundamentais para garantir que algumas das demandas permanecessem na sistematização. Esses quatro parlamentares foram fundamentais para que a criminalização do racismo se mantivesse no texto.
E agora?
Temos um desafio muito grande de ocupação principalmente do Congresso Nacional. Se você olhar para os últimos 30 anos, os maiores legisladores que pautaram a questão racial continuam sendo Benedita da Silva e Paulo Paim.
Eu estou fazendo um estudo agora no doutorado de analisar os projetos de lei pós-constituinte e é fácil dizer que eles são responsáveis por mais da metade do que foi proposto nos últimos trinta anos.
A importância da presença de parlamentares negros engajados é exatamente essa de traduzir essas demandas para o processos legislativo, de fazer com que elas estejam presentes, porque a luta não acabou no processo constituinte .
O olhar para esses últimos 30 anos nos diz: sem a presença deles, muitos dos direitos que a gente conhece hoje — não é exagero dizer — provavelmente não estariam [no texto final da Constituinte] ou não teriam sido garantidos ou positivados nesse período. É triste perceber que eles estão há 30, 35 anos numa luta com quórum bastante reduzido.
Há uma grande importância dos parlamentares negros, mas também de uma litigância, de um advocacy antirracista, porque isso também não se observa com uma frequência, ou uma intensidade tão grande quanto os outros movimentos sociais fazem.
Outros movimentos sociais costumam acompanhar projetos de lei e fazer algum tipo de pressão nos parlamentares. Não só nos parlamentares negros. O movimento de mulheres faz isso o tempo todo, trabalhadores fazem isso. Esse trabalho de advocacy e litigância e de lobby, a gente também vem observando o Movimento Negro fazer com mais força principalmente nos últimos dois, três anos. Um exemplo importante disso é a Coalizão Negra por Direitos.
Quais foram os maiores desafios para a Constituição sair do papel?
Os anos de 1990, 2000 e 2010 não foram fáceis. A gente conquistou dispositivos ou direitos, mas alguns dos direitos a gente tem muita dificuldade de ver acontecer.
O que estamos observando nos últimos anos não é só uma discussão sobre como implementar ou como que a gente desenha, mas sim como estão destruindo as políticas. Estamos voltando para umas discussões que a gente já tinha superado, como as questões ligadas à não titulação de terras quilombolas.
O que observamos é mais do que a tentativa de revogar leis e direitos conquistados.
É preciso voltar com um discurso que a geração anterior à nossa já tinha colocado: não há democracia racial, não temos igualdade, as igualdades [no Brasil] têm cor
O que fazer para nossa geração honrar o trabalho feito pelos que nos precederam?
Esta é uma pergunta difícil que eu já fiz para as mais velhas e para os mais velhos. Cada geração tem uma tarefa histórica. A tarefa da geração anterior era desmantelar o ideário de democracia racial e falar claramente sobre desigualdades raciais.
Nós somos fruto dessa luta política, das ações afirmativas, da experiência dos coletivos de mulheres. Estamos colhendo frutos. Mas tudo que estava assentado e mais ou menos acordado em relação ao entendimento de questões raciais começa a ser revisado.
Acho que temos uma tarefa enorme e difícil, que é manter o legado. Lembrar que essa história por direitos existe, visibilizar e dar nome a cada um desses ativistas. Foram 21 ativistas que participaram de audiências públicas e que falaram sobre a questão racial. É até injusto, porque ele só consegue ver quem está nos documentos, quem assinou, quem estava nas atas.
Mas há tanto trabalho subterrâneo para que essas pessoas estivessem no congresso em 1987, 1988.
Acho que nossa primeira tarefa é reverenciar e lembrar dessas pessoas e trazer todas elas, cada detalhe, o máximo que a gente conseguir achar. Temos uma dívida e um trabalho muito grande de manter o que foi construído na memória e lutar pelo que virá para que não se perca tudo isso. É uma tarefa dura, muito difícil, mas acho que estamos aqui.
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O movimento Negro tem um projeto de País, melhor para todos e todas. Excelente entrevista, parabéns Natália Neris, torço para que esta sua fala chegue a muito mais pessoas, jovem e adultos, para manter o Movimento Negro vivo no coração de cada Brasileiro e Brasileira. Nos pioneiros dos Movimentos, IPCN – INSTITUTO DE PESQUISA DA CULTURA NEGRA, no Rio de Janeiro, tive conhecimento dos primeiros passos para criação do Movimento Negro Unificado no Estado de São Paulo. Nós sabemos que a luta é dura e desleal, quando você sabe que em escolas Municipais e Estaduais, vem ao longo dos tempos, no ensino fundamental e médio, sala de aula de 35 alunos, a maioria não tem 10% de Crianças Negras, quando não se tem referência Negra nas FFAA, nas Instituições Públicas e Privadas, os pioneiros fizeram e bem sua parte, e a luta continua como antes, e sem eco.