Quando eu tinha 17 anos, minha mãe me pediu para tomar uma decisão: escolher entre ter um computador ou participar da viagem de formatura do Ensino Médio. Mesmo querendo muito me integrar à turma, sabia que a exclusão seria ainda maior se não tivesse um computador. Foi assim que, aos 17 anos, tive o primeiro equipamento.
Com esse passo dado, o segundo ainda era um desafio: ter internet banda larga fixa. Era 2007, já existiam planos de internet fixa. Mas isso não era uma realidade na minha casa. Esperava o relógio bater à meia noite e corria para usar a famigerada internet discada, já que depois desse horário o custo era reduzido. Nascidos nos anos de 1990 vão me entender.
Certa vez, a conta de telefone bateu os R$400. Minha mãe, diarista, meu pai desempregado, não tinham a menor chance de pagar essa dívida. Fomos ao Procon e ganhamos a causa. Nesse dia, ela, o pai e a avó se uniram para dividir a conta da internet em casa. ‘É para o estudo da Jéssica’, diziam.
Crescimento desigual — Mesmo passados 15 anos desta história, o acesso à internet ou mesmo a um computador continuam sendo um grande desafio nos dias de hoje. Mesmo com o evidente crescimento do acesso, há muitas desigualdades na forma e conteúdo acessado.
A edição de 2020 da pesquisa TIC Domicílios, divulgada em agosto de 2021 e que reflete sobre o uso de internet no Brasil, mostra que o acesso aumentou, saltando de 74% para 81% da população, representando 152 milhões de brasileiros conectados.
No grupo que integra a classe C, esse número subiu de 80% em 2019 para 91%. Nas classes D e E, o percentual foi de 50% para 64%.
Mesmo com o aumento, o nível de conectividade desses grupos ainda é bem menor do que os níveis das classes A e B, que são de 100% e 99%.
Desigualdades no acesso — “Este número elevado é frequentemente usado para classificar o país como uma nação conectada, mas a análise dos dados estatísticos disponíveis mostra um cenário diverso desta imagem”, diz a pesquisa Acesso fixo à Internet, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (idec).
Uma análise realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), mostra ainda que, na classe D e E, apenas 14% das casas brasileiras têm computador.
Além disso, 99% dos brasileiros conectados fazem uso do aparelho celular, sendo que 58% dos usuários só acessam a internet pelo celular, com pacotes limitados, resultando em experiências também limitadas na rede. Esse grupo é composto majoritariamente (85%) pelas classes D e E.
Os dados do estudo do Idec mostram que, quatro a cada dez usuários não tiveram acesso a políticas públicas por falta de acesso a conexão 3G ou 4G.
Em meio à pandemia, essa lacuna ficou ainda mais evidente. O levantamento do Idec mostra que 28% enfrentaram dificuldades para receber benefícios sociais, como o Auxílio Emergencial.
Um outro estudo, agora do Instituto Locomotivas e da empresa de consultoria PwC, apresentado neste ano, mostra que 33,9 milhões de pessoas não têm acesso à internet e 86,6 milhões não conseguem se conectar todos os dias.
O grupo daqueles que foram chamados de “desconectados” representa 20% da população e tem acima de 16 anos. Segundo o estudo, são, essencialmente, pessoas negras e que compõem as classes C, D e E. Entre os plenamente conectados, só 8% integra as classes D e E. Já entre os desconectados, essas mesmas classes somam 60%.
Todos esses dados vão ao encontro de um desafio muito grande, principalmente diante da pandemia.
Se a internet pode ser um instrumento de exercício da democracia e de acesso a direitos humanos, inclusive à informação, no atual cenário a desigualdade de acesso acentua ainda mais as desigualdades.
Segundo o estudo do Idec, isso separa o País em dois grupos: um que participa do mundo mediado pelas tecnologias da informação como cidadão/cidadã “de primeira classe”, com acesso pleno a todos os serviços e potencialidades da internet, e outro no qual esta participação se dá de forma limitada e limitante, sendo meramente funcional.
Da ponte pra cá é diferente — A cada entrevista que realizamos no Nós em meio à pandemia, seja com professoras ou estudantes da rede pública, esses dados se faziam reais, e muito perto de nós, muitas vezes na nossa rua.
“Muitas das nossas famílias têm acesso à internet através de pacotes, então, dependendo do vídeo ou do site que a professora pede para acessar, que pede pra fazer qualquer coisa assim, o pacote acaba”, é o que narrou a professora Janaína, da periferia de São Paulo.
Uma mãe a procurou desesperada, pois não sabia como colaborar com o estudo remoto dos quatro filhos, sendo que ela tinha apenas um celular:
“Professora, como é que eu vou fazer lição com meu filho se eu só tenho um celular e eu tenho quatro crianças? Meu celular não é um celular tão potente, então, não posso baixar lição assim para todo mundo”.
Me lembro de uma reportagem que mostrava uma garota que todos os dias ia até o ponto perto de casa porque ali o sinal de internet funcionava. Assim ela podia estudar.
Esses são alguns exemplos do que acontecia antes nas periferias, é que foram intensificados com a pandemia. Muitas pessoas que dependiam do Auxílio Emergencial tiveram dificuldades para acessar esse direito e outras que dependem da internet para estudar ou trabalhar, fazendo Home Office, ainda encontram oscilações na conexão.
Empresas de call center poderiam, por exemplo, ter liberado seus funcionários para realizar home office. O que seria uma ação simples, como disponibilizar um computador, não foi realizada e os trabalhadores continuaram trabalhando presencialmente. Se antes, o critério para ser contratado era morar perto do trabalho, hoje é ter acesso à internet. A pesquisa do Idec reflete também sobre como os pacotes de dados tornam oacesso ainda mais desigual, já que é possível acessar alguns serviços, principalmente redes sociais (Instagram e WhatsApp) ao acabar os dados móveis, mas não outros sites e aplicativos.
Em ano eleitoral, garantir acesso à informação – Diante de todo o cenário da internet no Brasil, e considerando que nossa população acessa informação em boa parte via celular e redes sociais, temos neste ano eleitoral muitos e grandes desafios.
Nós, enquanto veículo independente, estamos criando novas narrativas a fim de furar a bolha e ampliar o direito à comunicação, que pode auxiliar a acessar outros direitos.
Mas nós esbarramos em desafios que são maiores que a nossa vontade de fazer a diferença.
Infraestrutura — Exemplo disso nas periferias de São Paulo são as estações de telecomunicações. Uma reportagem da Agência Mural de Jornalismo das Periferias mostra que, na cidade de São Paulo, há 7.509 estações. Para um bom funcionamento do sinal de celulares, seria importante que menos de mil habitantes fizessem uso de cada torre.
“No entanto, apenas 20 dos 96 distritos da capital estão abaixo dessa marca. Em distritos das periferias, o número é 10 vezes maior que o recomendado, como é o caso do Iguatemi (10.639 pessoas por torre) e da Cidade Tiradentes (9.614 habitantes), ambos na zona leste. Os dados são da Associação Brasileira de Infraestrutura para Telecomunicações”, aponta a matéria.
As big techs — Para além de toda a dificuldade em torno do acesso à internet, veículos pequenos e independentes lidam com a arquitetura e lógica empregada nos algoritmos das redes sociais.
Então, por mais que estejamos muito próximos de nosso público geograficamente, virtualmente há barreiras algorítmicas que nos impedem de chegar até as pessoas que queremos. Mais que respostas, precisamos fazer nossas perguntas às chamadas “big techs” (empresas como Google, Facebook, Twitter): como irão fomentar a democracia da informação se a informação está atrelada a um só algoritmo e, ao fim, tem mais alcance quem paga mais? Como iremos regular o conteúdo e a atuação delas de maneira democrática e equânime inclusive para veículos independentes?
Precisamos também continuar pressionando nossas casas legislativas, câmaras e Congresso Nacional para que projetos de lei que dialoguem com a democratização da comunicação, e isso passa também por democratizar a internet.
Novas narrativas — Democratizar a informação passa também em pensar formatos que sejam acessíveis a todos, como vídeos e podcasts. E se queremos realmente discutir política com o maior número de pessoas, precisamos ouvir, atravessar as pontes (físicas e simbólicas) a fim de entender os medos e dificuldades que as populações mais pobres vivenciam no país hoje.
O conteúdo deste artigo foi baseado nas reflexões realizadas durante a mesa “Comunicação e Tecnologia” do Fórum Social Mundial, ocorrido em Porto Alegre (RS), no dia 29 de abril. É possível conferir a transmissão da mesa completa na TV da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Clique neste link.