Margens de rios e lagoas, praias, mangues e ilhas são áreas que se estendem pelos quase 7.500 quilômetros da costa brasileira, conhecidas como ‘terrenos de marinha’. Diferentemente do que possa parecer, não são ligadas à Marinha, não estão sob o controle das Forças Armadas do Brasil.
Esses territórios são propriedade exclusiva da União, segundo a Constituição Federal, e de responsabilidade da Secretaria de Patrimônio da União (SPU), vinculada ao Ministério da Economia. Como patrimônio de todo povo brasileiro, sua finalidade deve atender ao interesse público.
Essa realidade, no entanto, pode mudar caso seja aprovada a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 3, de 2022, em trâmite no Senado. Aprovada na Câmara dos Deputados no ano passado, está em análise na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, sob relatoria do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).
A proposta está no Congresso Nacional há 12 anos, com o objetivo de revogar dois dispositivos constitucionais para acabar com o instituto dos “terrenos de marinha”, transferindo a propriedade dessas áreas para estados, municípios e “foreiros, cessionários e ocupantes”.
Comunidades tradicionais, ativistas e pesquisadores alertam que a proposta abre espaço à criação de praias privadas e à degradação ambiental via especulação imobiliária, podendo ampliar conflitos e desigualdades sociais.
“Essa PEC vem com um pretexto de que é uma legislação antiga que precisa ser atualizada, mas os terrenos de marinha são áreas de proteção não só ambiental, mas também uma garantia para os povos tradicionais ocuparem suas áreas seculares, principalmente diante da realidade de invasão da especulação imobiliária”, afirma o caiçara Santiago Bernardes.
Segundo ele, a aprovação da PEC causará um impacto negativo estrutural às localidades litorâneas. “Não é só a diminuição das áreas do fazer cultural, como a pesca, mas tudo que envolve o território, que vai além do mar, chamado em muitas regiões de ‘maretório’, afirma Bernardes, que também é biólogo e atua na coordenação do Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba, movimento formado por indígenas, caiçaras e quilombolas em defesa dos seus direitos e territórios.
Prevista na PEC, a transferência do domínio pleno desses terrenos de forma gratuita para habitantes de baixa renda, como populações indígenas e vila de pescadores, por exemplo, é vista com desconfiança por Bernardes.
“Na prática, esses moradores são preteridos no processo, seja porque não possuem documentação da área, ou porque quando municípios e estados assumem estas áreas costumam dar preferência a empreendimentos turísticos que não contemplam as comunidades. Muitos proprietários ainda estendem suas construções irregulares, invadindo áreas ocupadas pelas comunidades. Na hora da compra, pesa o poder econômico e político”, denuncia.
Desigualdades sociais – Professor visitante da Universidade de Brasília (UnB) e integrante do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), Ricardo de Sousa Moretti critica diferentes trechos do texto da PEC, como o que autoriza a venda dessas áreas “ao domínio dos ocupantes não inscritos, desde que a ocupação tenha ocorrido pelo menos cinco anos antes da data de publicação desta Emenda Constitucional e seja formalmente comprovada a boa-fé.”
Para ele, isso ocasionará o deslocamento de populações tradicionais e vulneráveis que vivem no local.
“O texto fala de ocupantes que não tinham nenhum reconhecimento de aforamento. Você tenta imaginar o que significa essa máquina na hora que envolver terrenos milionários, de ilhas, que são altamente valorizadas. A facilidade com que a pessoa comprova que ocupou desde sempre com ‘boa-fé’. E tenta imaginar a dificuldade que será de um núcleo indígena, um favelado, dizer que eles estão lá desde sempre. A PEC é um presente para os ricos e poderosos que ocuparam áreas irregularmente. E tira praticamente toda a autonomia do Estado sob a gestão desses espaços”, comenta.
Como explica o pesquisador, os concessionários que passaram a ser proprietários pagavam taxas criadas na época do Brasil colônia. Isso permite aos ocupantes a utilização dos imóveis, mas sem o direito à propriedade da terra. Detalhe importante, já que viabiliza um controle mínimo sobre essas áreas pela União a favor do interesse público, o que pode vir a desaparecer da forma como hoje isso caminha, porventura aprovada a PEC.
O professor salienta, ainda, que a propriedade foi historicamente sonegada aos mais pobres do Brasil como uma estratégia política. Desse modo, toda a política de venda de terras no país foi feita para que os pobres não tivessem acesso à propriedade imobiliária, forma principal de aquisição de riqueza em países subdesenvolvidos como o Brasil.
“Cancún Brasileira”
A advogada Patrícia de Menezes Cardoso, mestre em Direito Urbanístico e Ambiental e doutoranda pela Universidade de Coimbra, estuda a disputa dos bens comuns na zona costeira brasileira. Ela também avalia o projeto como uma ameaça aos direitos dos povos e comunidades costeiros. “A proposta acirra a disputa pela zona costeira e os conflitos fundiários promovidos pela pressão do mercado imobiliário e turístico, por meio da grilagem e expulsão dessas comunidades de seus territórios de vida”, afirma.
Segundo a pesquisadora, a PEC nº 3, de 2022, somada a projetos de lei de legalização dos jogos de azar no Brasil (PL nº 442, de 1991), e de privatização de áreas de orla e praias marítimas, estuarinas, lacustres e fluviais, abrangendo a restrição de acesso a faixas de areia em empreendimentos turísticos (PL nº 4444, de 2021), formam a “Boiada Costeira”, intitulada pelo ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL) como a “Cancún Brasileira”, em referência a uma cidade do México considerada um oásis dos resorts, projetada para o turismo.
Para Patrícia, é preciso aprender com a experiência de países como Espanha e Inglaterra. “Após intensa privatização de sua costa, hoje pagam caro para desapropriar áreas particulares para a implantação de projetos de interesse público e social”, aconselha.
Praias para poucos? – A assistente social e assessora do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil (MPP), Maria José Pacheco, observa que a legislação determina que as praias são bens de uso comum, permitindo a livre circulação de pessoas. Apesar disso, observa com bastante frequência a instalação de cercas e muros por hotéis e grandes empreendimentos nessas áreas, impedindo o acesso do povo.
“Se essa PEC passar, o acesso será limitado, tanto o de lazer como o de trabalho das comunidades e da população como um todo. Existem grupos, inclusive estrangeiros, que estão interessados nessas áreas. Sendo área da União, as comunidades ainda podem recorrer. Se tudo for privatizado, haverá um conflito maior. No caso das praias, todo povo brasileiro pode ser impedido de visitar essas paisagens”, avalia.
A assessora relembra o artigo 10º da lei nº 7.661, de 1988 (Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro), segundo o qual “as praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica.”.
Arquiteto, urbanista e professor titular de Planejamento Urbano da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), Nabil Bonduki, critica a PEC e fala sobre a construção de praias privadas em consonância com um projeto de especulação imobiliária.
“As áreas litorâneas são áreas hiper disputadas para resort, para pousadas e para incrementos comerciais. Se você privatizar, você cria a possibilidade de fazer condomínios com repasse de propriedade. Em tese, a legislação protege o uso público da praia, na verdade, mesmo os condomínios são obrigados a deixar o acesso público para a praia, mas muitas vezes esse acesso público é camuflado, feito de um jeito para que não seja frequentado ou seja de difícil acesso”, aponta.
Impacto socioambiental – A extinção dos terrenos marinhos significa, segundo Patrícia, privatizar mais de 550 mil imóveis federais, com valor que supera R$193 bilhões, com relevante função pública e socioambiental.
“[Essa função pública é voltada] para o enfrentamento da crise climática em razão do aumento do nível do mar, para a proteção dos povos e comunidades de pescadores, caiçaras, ribeirinhos e quilombolas que preservam a nossa biodiversidade, assim como para a implantação de projetos de infraestrutura como a portuária, marítima e fluvial e para a segurança e defesa nacional”, pontua.
Bernardes não vê com otimismo a proteção ao meio-ambiente. Para ele, a PEC também pode resultar numa piora da fiscalização dos terrenos de marinha, geralmente insatisfatória.
“Com essa PEC, há uma abertura para construções nessa faixa que abrange ecossistemas como a própria faixa de areia, mas também a restinga, os manguezais, as bocas dos rios. Tudo isso envolvendo os impactos das mudanças climáticas e o aquecimento global.”
Mudanças climáticas e gestão pública – Como representante de uma comunidade tradicional, Bernardes chama a atenção para o desastre em São Sebastião neste ano, que intitula “crime-tragédia. Para ele, acidentes ambientais no município são resultado da expulsão de caiçaras de suas áreas naturais de convívio e de vida para as encostas dos morros.
“[Isso aconteceu] juntamente com os migrantes que vieram para construir essas mansões que têm nessa região e que também foram excluídos. Um racismo ambiental muito forte. Um impacto direto ao meio ambiente, ao inserir grandes construções em áreas costeiras e um efeito negativo em cadeia para essas comunidades tradicionais, que vão tendo seus territórios de vida cada vez mais diminuídos.”.
A costa sul de São Sebastião, no litoral Norte de São Paulo, citada por Bernardes, tem registrado pontos de alagamento e deslizamentos em estradas no primeiro semestre de 2023. A Vila Sahy, por exemplo, foi um dos locais mais atingidos pela referida tragédia que devastou o litoral no início do ano.
Frente a isso, Maria José relembra estudos científicos que mostram que há maior preservação do meio ambiente em territórios onde habitam comunidades tradicionais. A avaliação da assistente social está em sintonia com a pesquisa do Instituto Socioambiental (ISA), divulgada em 2022.
“As áreas protegidas com presença de Povos Indígenas e populações tradicionais – Terras Indígenas, Territórios Quilombolas, Reservas Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento Sustentável – protegem um terço, cerca de 30,5% das florestas no Brasil”, mostra estudo.
Para Moretti, a PEC desconsidera esse fato e representa uma afronta ao povo brasileiro. Lembra, ainda, a importância dos terrenos de beira de mar influenciados pela maré como áreas estratégicas em contexto de mudanças climáticas.
“O texto da PEC passa a gestão para estados e municípios, contudo, não diz nem exatamente qual parte fica para o estado e qual parte fica para o município. Inclusive as empresas que privatizaram os serviços públicos, passam a ser donas desse patrimônio gigante sem qualquer instrumento de gestão.”.
Segundo Bonduki, em um cenário de mudanças climáticas, com a elevação do nível do mar, essas áreas precisam ter um maior controle do poder público, para que elas pudessem não agravar os problemas que devem acontecer em função da emergência climática.
“As áreas são muito mal geridas. Muitas vezes vemos o processo de ocupação descontrolada que, inclusive, gera problemas sérios, como vemos no litoral de São Paulo. Hoje já é mal gerido e se passarem para o setor privado, vai ser gerido sob a ótica da rentabilidade. Podemos ter desmatamentos e uma série de efeitos que serão nocivos para a região”, enfatiza.
A reportagem do Expresso Na Perifa entrou em contato com a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) para ouvir o governo sobre as questões apontadas pelas comunidades tradicionais e pelos especialistas entrevistados. Não houve respostas até o fechamento desta matéria.