Reconhecer emoções e situações que me causam desconforto tem sido uma jornada de autodescoberta, permitindo-me enfrentá-las de maneira mais construtiva. Em minha experiência pessoal, uma das revelações mais impactantes foi a distinção entre direitos e privilégios. Como uma mulher negra de uma comunidade periférica, tive a oportunidade de acesso à educação, moradia digna, alimentação saudável e momentos de lazer em meu cotidiano. No entanto, por muito tempo, carreguei uma sensação de culpa, como se essas conquistas não pertencessem a mim. Acreditava, equivocadamente, que, por ser uma mulher negra, deveria ter enfrentado dificuldades extremas para alcançar marcos como meu diploma em Jornalismo.
Inicialmente, eu usava a palavra “privilégio” para descrever minha situação, sentindo-me desconfortável com a ideia de ser considerada privilegiada. Minha perspectiva, contudo, mudou após uma profunda reflexão em terapia. Comecei a utilizar a palavra “acesso”. Percebi que tive acesso a oportunidades que são negadas a muitos em nossa sociedade profundamente desigual. Tive acesso a benefícios que deveriam ser garantidos a todos, não uma exceção.
Essa mudança de perspectiva reduziu a sensação de culpa e a transformou em revolta e indignação diante da desigualdade social em nosso país. Agora, posso direcionar esses sentimentos de maneira mais eficaz, utilizando-os para me manter ativa em meus propósitos como jornalista e cidadã.
Além disso, essa distinção entre direitos e privilégios também lança luz sobre a falácia da meritocracia. Sempre me emociono ao ouvir as histórias de minha tia, uma mãe solteira que enfrentou uma árdua jornada de trabalho. Ela saía de casa antes do amanhecer, trabalhava incansavelmente e cuidava de seus filhos com imensa dedicação. Mesmo nos raros momentos de folga, o trabalho doméstico a esperava, pois o descanso era um luxo que ela raramente podia desfrutar. Para proporcionar uma televisão aos filhos, ela superou desafios inimagináveis.
Apesar de admirar profundamente a determinação de minha tia, questiono incessantemente por que ela teve que suportar tanto para ter acesso ao básico. A que custo? Problemas de saúde e poucas memórias de momentos de lazer com os filhos quando eram pequenos.
É crucial não romantizar o sofrimento como uma condição para alcançar o mínimo necessário. Não é normal exigir esforços hercúleos para garantir direitos básicos. Atribuir a responsabilidade apenas ao indivíduo é ignorar a verdadeira raiz do problema: uma sociedade profundamente desigual e marcada pelo racismo. Em tal cenário, torna-se impossível acreditar na meritocracia. Uma vida digna é um direito humano, não um privilégio.