4 abril 2023 em Cultura
Confira até junho as exposições do grupo Mahku e de Carmézia Emiliano
A icônica rampa de Lina Bo Bardi, que liga o primeiro ao segundo subsolo do Museu de Arte de São Paulo (Masp), está diferente. O vermelho, pela primeira vez, cedeu espaço para pinturas de símbolos da cultura huni kuin, feitas pelo grupo Mahku. A obra integra a mostra “Mahku: Mirações”, no segundo subsolo. No primeiro, está a individual de Carmézia Emiliano: “A árvore da vida”. As duas mostras inauguram o ano Histórias Indígenas, em que o museu volta-se às diferentes manifestações indígenas ao redor do mundo.
“As pinturas murais participam de uma maneira protagonista das exposições do grupo. Queríamos trazer isso para Masp, mas o andar onde está a exposição é rodeado por janelas”, conta ao Expresso Bairros Guilherme Giufrida, curador-assistente da instituição, que teve a ideia de indicar a escada como suporte para o mural. “O que eu acho interessante das pinturas murais é que elas não têm os aspectos de comercialização. Elas têm outra natureza na produção.”
O trabalho tem um caráter efêmero e ficará exposto no Masp até o fim deste ano, quando a rampa será novamente pintada de vermelho. A comercialização das obras do Mahku, entretanto, faz parte da operação o grupo, cujo slogan é: “Vendo tela, compro terra”. Eles já expuseram seu trabalho em importantes instituições dentro e fora do Brasil, como o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) e a Fundação Cartier, em Paris.
A partir das experiências institucionais e comerciais, o grupo criou o lema de vender tela para comprar terra. Com a venda dos trabalhos — hoje, o Mahku é representado pela galeria Carmo Johnson Projects —, eles conseguem financiar melhorias de infraestrutura na aldeia, a exemplo de construção de banheiros e de uma cozinha comunitária, e comprar terras para preservar a mata local.
“Tudo que é vendido é voltado para a comunidade. Dependendo do governo, as terras podem ser tiradas dos huni kuin. Mas, se comprarmos, ninguém pode nos tirar. Estamos preservando a floresta, a cultura da comunidade e as espécies raras de plantas que servem de remédios para muitas doenças”, ressalta Kássia Borges, curadora-adjunta do Masp e integrante do grupo Mahku.
Siga o nosso Canal e saiba tudo sobre a cidade de São Paulo pelo Whatsapp
O boletim é semanal, às segundas, quartas e sextas.
Quero receber!Hora do chá
Além do expressivo mural produzido no guarda corpo da rampa, a exposição apresenta cerca de 120 obras, entre pinturas, desenhos e esculturas. Os trabalhos são criados a partir dos cantos, mitos e histórias dos huni kuin. As obras de arte são parte do ritual de nixi pae — que envolve a ingestão de ayahuasca.
“Você toma o chá, senta e fica bem quietinho. Ao entoar o primeiro canto, você começa a ver uma luz e cores fortes, como um caleidoscópio. Depois, é feito o segundo canto, quando os participantes têm as mirações”, explica Borges.
As mirações são experiências visionárias que aparecem durante os rituais e depois são traduzidas tanto nos desenhos e pinturas do coletivo quanto nos cantos que integram o cotidiano da aldeia Chico Curumim, no Acre, onde vivem os artistas do Mahku.
A ideia de traduzir as experiências e registrar os mitos em desenho partiu de Ibã Huni Kuin, líder do grupo e curador convidado da exposição. Com um colorido vibrante, eles traduzem em imagens lendas como o de “kapewë pukeni”, o jacaré-ponte, figura símbolo do grupo e muito presente nas obras expostas.
A alegoria ilustra a passagem dos huni kuin da Ásia para a América, através do Estreito de Behring. Um jacaré gigante os teria ajudado na travessia do Oceano Pacifico. O pagamento para o transporte seria feito em troca de comida e o respeito à condição do povo não matar filhotes jacarés e dar a carne para ele comer. Quando a variedade de animais se torna escassa, porém, os huni kuin teriam cassado um pequeno jacaré, traindo a confiança do jacaré grande.
O desrespeito ao combinado teria feito com que as pessoas falassem línguas diferentes e se separassem em outros povos. “O mundo sempre foi dividido. Quem atravessa o mundo é quem já conquistou os conhecimentos. Por isso, cantamos a música do jacaré, em nossas reuniões, para abrir os caminhos”, explica Ibã Huni Kuin.
A fotógrafa dos Macuxis
Se a obra dos huni kuin tem sua inspiração em imagens do subconsciente e das fábulas, a artista Carmézia Emiliano trabalha com os dois pés na realidade. A mostra “Árvore da Vida” traz 35 pinturas produzidas na última década. Em suas telas, Emiliano apresenta a vida e as tradições dos Macuxis, população indígena situada na região Circum-Roraima, cujo principal cartão postal é o Monte Roraima.
Como em um filme, a artista registra o passo a passo das tradições e manifestações culturais dos macuxis, como a dança do parixara, os jogos e brincadeiras relacionados aos períodos de festas. Outro trabalho que se destaca é um autorretrato no qual a artista, em uma pintura a óleo, se representa em frente a um cavalete pintando o Monte Roraima em uma tela.
“Nessa pintura, há muitas simbologias fundamentais para pensar o próprio gênero. Uma delas é a representação da própria subjetividade”, destaca Amanda Carneiro, curadora da mostra. “A individualidade, característica muito presente no autorretrato, é rompida nesta representação pelo jeito como ela faz. A artista se coloca no centro da tela, mas apresenta, à sua volta, as malocas, expondo sua relação com a comunidade.”
Pioneira
Emiliano, de 63 anos, é autodidata e começou a pintar nos anos 1990. A entrada de seu trabalho em ambientes institucionais de arte acontece a partir da Bienal Naïfs do Brasil, realizada no Sesc Piracicaba, interior de São Paulo, no início dos anos 2000.
Embora hoje classificar um artista como “naïf” seja algo questionável, pois não há nos trabalhos desses artistas nada de ingênuo, a pintora ostenta em sua linha biográfica nas redes sociais a nomeação de “artista naïf”. Em suas telas, entretanto, apresenta método, estilo e pensamento complexo de tema e composição.
“Essa é uma categoria bastante ambígua. Mas trabalhar com arte é trabalhar com a contradição”, ressalta a curadora. “A classificação como ‘artista naïf’ foi fundamental para a inserção de vários artistas no sistema de artes. É natural que eles estejam apegados a ela.”
Emiliano é uma das primeiras artistas de origem indígena a se inserir no sistema de arte. A apresentação de seu trabalho lembra o público que, apesar de a arte indígena estar ganhando destaque nos últimos anos, esses artistas estão no sistema de arte há décadas. Em 2023, com a programação tematizada em “Histórias Indígenas”, o Masp almeja discutir e dar visibilidade a essa produção.
Serviço
Masp: Av. Paulista, 1578 — Bela Vista
“Carmézia Emiliano: árvore da vida”: até 6 de junho de 2023; “Mahku: Mirações”: até 4 de junho.
Ter.: 10h/19h, qua./dom.: 10h/17h
Ingresso: R$ 60, (ter.: grátis)
Site: masp.org.br.
Karina Sérgio Gomes