No dia 25 de fevereiro de 2002 a bolsa de Marli Soares estourou. Como havia visto nos filmes, foi ao hospital. Mas os centros de saúde da cidade de Itaboraí, no Rio de Janeiro, não aceitaram atender a então adolescente de 17 anos com quase nove meses de gestação. O jeito foi ir para Niterói, num trajeto de mais de 40 minutos.
“Violento” é a palavra que Marli usa para descrever o tratamento recebido no Hospital Estadual Azevedo Lima, onde nasceu de parto normal seu primeiro filho, Luís Felipe. “Eu quase morri, porque tive uma hemorragia pós-parto”, conta Marli. Depois do nascimento, ela teve que voltar à mesa de cirurgia e receber transfusões de sangue. “Passei a noite toda falando pra minha mãe que estava com muita dor. Mas é aquela negligência com a mulher negra, pobre e adolescente. Esse é um combo onde a gente vê violência em larga escala”, afirma.
VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA Os maus-tratos recebidos durante a gestação, no parto e no pós-parto, levam o nome de violência obstétrica. Agressões verbais, realização de procedimentos sem consentimento, ser amarrada na sala de parto e impedida de ver o filho após o nascimento são exemplos dessa violência. A enfermeira obstétrica Elisângela Oliveira diz que a violência pode ocorrer a todo momento, “desde a recepção, momento em que a mulher chega para abrir uma simples ficha e recebe olhares incriminatórios e comentários maldosos, até o atendimento médico quando o profissional não respeita suas vontades, não esclarece dúvidas e amedronta, querendo impor uma conduta”.
O trauma do primeiro parto foi grande. Na segunda gestação, ao 19 anos, Marli resolveu só procurar o hospital quando não aguentasse mais as dores das contrações. Maria Fernanda nasceu uma hora e meia depois — o que foi suficiente para novas violências obstétricas e procedimentos médicos sem o seu consentimento. Do terceiro filho, Carlos Augusto, ela fez uma cirurgia cesárea.
Hoje Marli é doula, uma profissional que acompanha e orienta as mães da gestação ao pós-parto. As influências positivas da relação com a doula vão desde cuidados físicos, passando por informações detalhadas sobre o que esperar do pré-natal ao parto e ajuda no momento da amamentação. O apoio emocional e a busca pelo bem-estar estão na natureza desse trabalho, de ponta a ponta. A motivação de Marli é evitar que outras mulheres passem pelas situações que ela passou.
NEGRAS E POBRES SÃO AS MAIS AFETADAS Uma em cada 4 mulheres já foi vítima de violência obstétrica no Brasil Entre abusos físicos e psicológicos, elas ouvem frases do tipo “Não chora não, que ano que vem você está aqui de novo” e “na hora de fazer não chorou” Mulheres negras, pobres, com pouco estudo e moradoras das regiões norte e nordeste são as que mais relatam maus-tratos Mulheres negras tem risco maior de pré-natal inadequado e ausência de acompanhante no parto fontes: Fundação Perseu Abramo; Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca-Fiocruz; A Cor da Dor: Iniquidades Raciais na Atenção Pré-Natal e ao Parto no Brasil
A enfermeira obstétrica Elisângela Oliveira afirma que o racismo coloca a mulher negra nos grupos mais afetados. “Por acharem que é mais forte, tem pelve larga e outros absurdos”, diz
A desumanização do parto — Na jornada pelo nascimento de Luís Felipe, Marli Soares foi submetida a dois procedimentos não recomendados. Um deles foi a episiotomia, corte feito na região entre o ânus e a vagina, com o intuito de “facilitar a passagem do bebê”. A doula explica que esse procedimento é na realidade uma mutilação genital e tem recuperação dolorosa. Publicado em 2017 pelo Ministério da Saúde, o documento Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal indica que a técnica não deve ser realizada de forma rotineira.
A manobra de Kristeller, em que a equipe médica aplica pressão na parte superior do útero para forçar a saída do bebê, é outra violência importante. O Ministério da Saúde diz que a técnica não deve ser realizada, porque expõe bebê e mãe a riscos.
Ainda assim, esses gestos abusivos, desproporcionais e perigosos são comuns em hospitais brasileiros. A pesquisa Nascer no Brasil, da Fiocruz, mostra que a maioria das mulheres passou por essas e outras intervenções excessivas no parto.
Mas por que isso acontece? Por que práticas abusivas são normalizadas? Para Marli, a resposta está na formação de médicos e enfermeiros e, também, no desinteresse de uma parte dos profissionais em se atualizar e conscientizar sobre o tema.
Como identificar violência obstétrica? — Mães que sofrem violência obstétrica podem demorar a entender o que de fato ocorreu. “Acreditam erroneamente que elas ou seus bebês foram salvos por médicos e profissionais desatualizados na sua conduta, por acharem que é isso mesmo, que é normal”, afirma Elisângela.
A violência está inserida na estrutura do sistema obstétrico, acrescenta Marli: “A gente vê muitas mulheres com medo do parto. Mas, quando a gente senta pra conversar com elas, [percebe que] não têm medo do parto, e sim da violência que podem sofrer”, diz.
EXEMPLOS DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
- No pré-natal, o profissional não respeita as decisões da mãe, impõe condutas, não esclarece dúvidas
- No parto, o plano da gestante não é respeitado
- As queixas não são atendidas
- A mãe fica muito tempo sem se alimentar
- A mãe recebe insultos verbais
- Profissionais usam, sem necessidade, medicamentos para acelerar as contrações (é o caso da ocitocina)
- A barriga da mãe é pressionada para forçar a saída do bebê
- A mãe é amarrada na maca
- A cesárea é feita mesmo diante da possibilidade segura do parto normal
- No pós-parto, impedem a mãe de ver a criança
- A mãe não recebe informações objetivas sobre o bebê, fica sem saber quando poderá ver a criança
Informação é fundamental — Para mudar o atual cenário de abusos rotineiros sofridos por mulheres ao dar à luz, “a informação é o ponto-chave”, diz Marli. Ao conhecer seu direitos, a gestante identifica com mais facilidade a violência. Elisangêla reforça: “a mulher tem o direito sobre o seu corpo, em qualquer circunstância”.
DIREITOS DA MULHER NA GESTAÇÃO
- Pré-natal, parto e pós-parto de qualidade
- Cartão da Gestante, que contém informações sobre a gestação
- Acompanhante de sua escolha no trabalho de parto
- Plano de parto, documento em que a mãe indica seus desejos, vontades, preferências, preocupações
- Ficar no mesmo quarto que o bebê após o nascimento
COMO DENUNCIAR Em caso de violência, o Conselho de Saúde e a Defensoria Pública acolhem denúncias. A vítima também pode ligar para o Disque Saúde (0800 611997), serviço da Ouvidoria Geral do SUS. O Disque 180 é a Central de Atendimento à Mulher, que recebe denúncias de violências
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Como podemos saber se o que ela chama de violência obstétrica nada mais foi que uma complicação de um parto bem feito? Minha comadre teve um sangramento importante depois de um parto natural e quase morreu, só foi salva porque o médico atuou rapidamente para retirar um pedaço de sua placenta que não tinha sido expulsa e estava fazendo ela perder muito sangue. Foram uma cirurgia de urgência e 5 bolsas de sangue para salva-la. Será que não foi isso que ocorreu neste caso também? Muitas vezes nossos preconceitos nos fazem esquecer da ciência.
Ainda bem que a moça entrevistada não estava fazendo seu parto com uma doula, pois esse sangramento a teria matado se não fosse atendida a tempo por um médico. Ainda bem que temos a ciência para nos proteger.
Corajosa em ainda encarar uma segunda gestação.
Ricardo Guimaraes. Venho lhe esclarecer que deixar um pedaço da placenta dentro do utero, realmente não é violência obstétrica MAS uma imperícia do profissional que não examinou a placenta expulsa e nem acompanhou o período de grimberg da paciente. GRAVE!!