Os murais da artista independente Natália Mota retratam referências históricas, personagens imaginados e do cotidiano, além da infância e da adolescência vividas em Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo. A principal mensagem de suas obras, diz a artista, está nas origens, na cultura e na vivência preta e periférica.
Moradora de São Mateus — também na zona leste e na periferia —, Mota tem 24 anos e uma carreira estabelecida. Vive de seu trabalho.
Artisticamente conhecida como Mota, em casa ela é Natália, a filha da Dona Marinalva e do Seu Adatan. Foi com o pai, autodidata, que aprendeu as primeiras técnicas de desenho e pintura e o amor pela arte. Adatan, porém, não conseguiu viver do sonho, embora tenha batalhado bastante para isso. Hoje ele é vendedor autônomo e funileiro, mas pôde ver os próprios passos no caminho trilhado pela filha.
“Meu pai não tinha incentivo, quando chegou em São Paulo, vindo da Bahia, no fim da década de 1980, ia muitas vezes até a praça da Sé — região central da cidade — e ficava dias inteiros na tentativa de vender os quadros que pintava”, diz Mota. “Sempre me incentivou, ao lado da minha mãe. Mas a dificuldade em viver desse trabalho gerou nele um receio por não querer que eu enfrentasse o mesmo.”
Mota conta que só adulta entendeu e legitimou a veia artística da família. “Na adolescência, me afastei por não entender muito essa relação do que era trabalho e o que era hobby, até que ingressei na faculdade de artes visuais para entender como somar as duas coisas”, afirma.
Choque de realidade — Na universidade, deu-se conta do caminho pela frente. “Percebi que na história da arte não existem pessoas como eu e meu pai. Fui entender ao estudar a missão francesa no Brasil. Os processos artísticos que tive contato na faculdade não me representavam.”
Os artistas da missão pintavam os indígenas e africanos de uma maneira “muito feliz, com corpos robustos e feições agradáveis”, explica Mota. “Uma representação mentirosa que me feria. Foi essa falsa visão da realidade que virou a chavinha de problematização da arte.”
No início do século 14, artistas franceses vieram ao Brasil para dar o pontapé no ensino de artes com o objetivo de se impor ao estilo barroco que, na época, predominava no País. O movimento é chamado de Missão Artística Francesa.
No incômodo da descoberta Mota passou a observar quem são os que constróem o País e o que têm a dizer. Foi buscar referências em fotos da família, gente que encontrava no caminho e rostos imaginados que, de alguma forma, ela sente que conhece de algum lugar.
Pessoas reais — Desde histórias resgatadas da infância na Cidade Tiradentes até o cotidiano dos dias de hoje estão substrato do trabalho da artista.
Meus ídolos são pessoas muito reais, meus amigos, que também falam de nós; Rosana Paulino, artista, pesquisadora e doutora em artes visuais pela USP, tem uma importância fundamental no meu processo de arte decolonial
O preço da arte — Hoje ela vive de suas produções e trabalhos e diz que a maior dificuldade está na chamada precificação, no fato de o senso comum achar o produto “exagerado e caro”.
E destaca também dificuldade em acessar espaços que possam gerar oportunidades futuras. “Isso difere artistas da quebrada. As dificuldades territoriais quase nunca são levadas a sério por esse mercado elitizado”, relata.
Segundo Mota, a maior mensagem de suas obras está em enaltecer origens, cultura e vivência preta e periférica. Nos próximos meses, pretende produzir um mural em parceria com o pai
Mais África nas escolas — Mota também atua como arte educadora em escolas e projetos sociais e busca resgatar a trajetória de atores responsáveis pela construção do Brasil e de outros países da diáspora por meio da aplicação das leis 10.639 e 11.645 que, apesar de não serem aplicadas em todos as escolas, estabelecem a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura africana, afro-brasileira e indígena.
Como arte educadora, a artista procura levar para as crianças o que chama de “o outro lado da história”, cheia de de riquezas e glórias dos guerreiros e guerreiras indígenas e africanos e das mulheres inteligentes que alimentaram, orientaram e cuidaram de um povo inteiro por meio do saber popular ancestral.
Meu processo escolar foi muito complicado. Demorei muito pra me descobrir como mulher preta, por conta do meu fenótipo, uma mulher preta de pele clara
A artista conta: foi chamada de argila molhada, papelão molhado. “Referências estranhas que me davam a sensação de não lugar o tempo todo. Eu sabia o que eu não era, mas não sabia o que era”, diz Mota. “Hoje, minha jornada de educar passa por brincadeiras típicas dos povos indígenas e afro-brasileiros. A brincadeira não devia ser tirada das crianças tão cedo nas escolas, e sim usada como ferramenta para promoção do conhecimento.”
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Matéria assim nos lembra da importância da Arte e como o jornalismo pode ser um meio potente de divulgação das trajetórias do nosso povo.
Povo alegre, talentoso, e consciente do seu papel como referência com a missão de desnudar os equívocos de uma História contada pelo opressor. Parabéns Mota!
Sei que sou suspeito em expôr meu comentário, mas também não posso deixar de parabenizar esta artista que tão precocemente revelou seu talento e interesse pela arte, aos 3 anos de vida já esboçava figuras de bichos com uma habilidade diferenciada…e logo entendi que eu estava diante de um talento, que precisava de alguma forma ser auxiliado mesmo sabendo que trilhar pelos caminhos das artes plásticas não é nada fácil… como sei também que o impossível não predomina cem por cento. Por isso depois de várias tentativas de desviá-la desse caminho, o melhor foi deixá-la seguir e ouvir a voz do seu próprio coração. Parabéns “minha artista”. Boa Sorte.
Ao ler essa matéria, arrepiada, extasiada, orgulhosa por tamanha reprensitivade. Mota, tu é luz na Zl l.