O funk carioca é um fenômeno musical que expressa a realidade de quem vive nas periferias. Diferentemente do que muitas pessoas pensam, o gênero vai além das letras sobre atos sexuais. E seu sucesso ultrapassa limites geográficos, sendo reconhecido mundialmente. Mas o alcance das batidas não impede que artistas e público de bailes – as festas que em São Paulo também são conhecidas como fluxos – sejam vistos com preconceito e criminalizados.
O Expresso na Perifa conversou com Thiagson, doutorando em música e funk na Universidade de São Paulo (USP). Na vida e na academia, o pesquisador descreve o objeto de estudo como uma maneira de entender a própria história.
O funk é uma das principais expressões musicais do Brasil. O que é esse movimento?
O funk é um fenômeno musical que vem da tradição do hip-hop e começou com os bailes black do Rio de Janeiro, que realmente tocavam funk, mas músicas de nomes como James Brown. Musicalmente o funk brasileiro não tem nada a ver com o funk do James Brown, mas é uma continuidade histórica. Na cultura hip-hop, na dança eletrônica dançante, uma das vertentes em que o funk bebeu muito foi a do eletrofunk de Los Angeles (Estados Unidos). Essa foi a matriz do funk que conhecemos hoje em dia.
THIAGSON, O QUE CARACTERIZA O FUNK NO BRASIL?
O que caracteriza o funk brasileiro é um gênero de música eletrônica feito por jovens e que tem sua base na periferia. É um ritmo quaternário baseado em quatro tempos e um ritmo de matriz africana, presente em rituais de umbanda e candomblé.
De cultura do hip-hop, tem também uma natureza antropofágica de criar a partir de tudo, como som de áudio do WhatsApp e música clássica. Dos gêneros de música brasileira que fazem sucesso, o que mais tem música clássica é o funk.
Uma diferença maior pode ser vista entre o funk e o brega funk, que tem uma questão histórica diferente e um ritmo semelhante ao reggaeton e a outros latinos, enquanto o funk vem de matriz afro-brasileira e de países como Nigéria.
A gente vê diferença também no que se toca nos bailes de rua de São Paulo e do Rio de Janeiro. No Rio predomina o 150 bpm e eu costumo brincar que a gente só sabe diferenciar o funk carioca do paulista e do mineiro pelo sotaque. Há um intercâmbio muito grande de informações, com MCs de Belo Horizonte gravando com os de São Paulo e por aí vai.
A vida das pessoas pode mudar para melhor por causa do funk?
É algo muito concreto. As pessoas começam a ganhar dinheiro quando tocam em festas e de diversas outras formas, não somente como MC e DJ. Vendem bebidas e organizam casas de show. Trata-se de uma questão existencial e que vemos muito nas favelas, como um projeto que surge para a diversão. O funk dá esperança para quem está na periferia e abandonado. Permite sonhar com oportunidades que não estejam na criminalidade.
Como mensageiro de crítica social, o funk relata o dia a dia na quebrada. Que importância isso tem?
O papel do funk é [fazer o] Brasil ter consciência do que realmente é. Na favela existe um outro país. Quem manda na favela não é o Estado, e sim outras autoridades. O funk espelha o Brasil enquanto a classe média tende a comparar o País com a Europa. O papel do funk é mostrar para os brasileiros que o Brasil é diferente, as pessoas são em sua maioria pretas e quem tem dinheiro são as brancas. É um conflito entre dois “Brasis”.
Dentro da favela, o papel é fazer a molecada se sentir representada. Antigamente o que passava na televisão era um padrão Malhação, uma novela com meninos de classe média. O menino da favela que assistia àquilo não se identificava.
Por que o funk incomoda e é associado à criminalidade e ao sexo irresponsável?
Vivemos em uma sociedade muito conservadora, de berço ocidental, que tem uma relação ainda muito tensa com a sexualidade. Na questão das drogas e da criminalidade, existe um moralismo de achar que o bandido na essência é um ser do mal. As pessoas não entendem que a criminalidade é construída socialmente. O incômodo é pelo funk mostrar o choque.
Essa associação também acontece porque as pessoas mais ricas se sentem superiores e dizem que os pobres têm famílias desestruturadas, quando na realidade se trata de outra estrutura e outra realidade. O filósofo Walter Benjamin falava que você pensa diferente dependendo da sua realidade. Se você tem dinheiro, age de uma forma. Se não tem, age de outra maneira.
O funk é sensual, irresistível. Muitas letras levam ao público uma sexualidade explícita. Um público jovem. O que isso revela?
Há uma fala que não é minha, mas que diz que o funk não precisa fazer protesto e para incomodar basta existir. Isso nos faz pensar que a putaria é política, porque não é preciso falar sobre política e desigualdade para se pensar em questões estruturais e políticas. Quando você vê um moleque de 9 anos, com aquela voz aguda, cantando putaria, você pensa nos problemas sociais.
Você acha que o funk é libertador para as mulheres?
A pesquisadora de funk Adriana Carvalho Lopes falou em 2009 que o funk não poderia ser feminista. Ela falava em sua análise que, mesmo quando as mulheres cantam, elas são muito cooptadas pela indústria pornográfica, que é machista. Hoje muitas coisas mudaram e eu acredito que o funk pode ser usado como uma forma de libertação e de contrariar valores machistas.
Muitos pesquisadores defendem que o funk só passou a ter letras explícitas cantadas por homens quando as mulheres começaram a cantar sobre sua sexualidade nos anos 2000, como se fosse uma resposta deles. Apesar de muitas vezes tentarem colocar o funk como algo opressor, é o funk que também mais acolhe pessoas fora do padrão, como MC Carol e as travestis. A travesti Lacraia cantando sertanejo, por exemplo, é algo impensável.
QUAIS TEMÁTICAS APARECEM NAS LETRAS DO FUNK?
O funk mais pop e ousadia(SERIA: e de ousadia?) descreve relações sexuais, com um refrão mais curto. É simplesmente uma descrição do ato sexual, mais dançante e acelerado. Já o funk consciente traz uma narrativa da vida nas favelas, das dificuldades e do desejo de superação, com letras mais longas e a produção menos acelerada, mais suave. O proibidão, por sua vez, muitas pessoas confundem com o de ousadia. Ele é o que fala da vida no crime, daí vem o nome proibido. Esse surgiu na década de 1990 e tem narrativas mais longas, normalmente com o tamborzão e uma narrativa de disputas entre as facções. Essa é uma variação que está em extinção e quase não se vê mais no mainstream. Nos bailes de hoje, predominam as montagens, em que o DJ junta vários fragmentos de músicas em uma gravação só.
O que acontece em um baile funk?
O que se canta nas letras não é o que se vê nos bailes, principalmente em relação ao sexo. O uso de drogas acontece em toda ocasião festiva e não só no funk. Quanto ao sexo, eu vejo um clima muito conservador nos bailes. Eu não vejo tanta gente se pegando e há um cuidado com o tratamento às meninas, porque se for da favela vai tomar um sacode. Já no carnaval de rua de São Paulo, as pessoas quase transam nas ruas.
Geralmente, os bailes têm aglomeração, com um roteiro no sentido de organização para respeitar os trabalhadores e não atrapalhar o comércio. Há esse cuidado por parte das pessoas que organizam os bailes. Alguns bailes são temáticos, como Natal e Dia da Criança, por exemplo.
De modo geral, vemos um paredão de som disposto em algum lugar, com pessoas aglomeradas e curtindo a festa ao ar livre. No Rio há tendas e em São Paulo, se chover, as pessoas se molham mesmo. Basicamente, a natureza dos bailes no Sudeste é a mesma e do(SERIA: e a do?) estilo da música que se toca também.
O papel do funk é fazer o Brasil ter consciência do que realmente é (…)Fazer a molecada da favela se sentir representada. Antigamente, o que passava na televisão era um padrão Malhação, novela de meninos de classe média. O menino da favela não se identificava
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