Com mais de dois anos de pandemia, a realidade de quem mora em favela é a de que a vida não pode parar. As soluções para problemas que envolvem a sobrevivência estão diretamente ligadas às adaptações exigidas pela rotina pandêmica. Em Heliópolis e em Paraisópolis, as duas maiores favelas de São Paulo, o “novo normal” é marcado pela luta.
Em Heliópolis, na região sul da capital, a covid-19 trouxe como principal desafio o provimento de comida para as pessoas em situação de vulnerabilidade. Desde o início da pandemia, a ONG Mover Helipa mantém uma cozinha comunitária na favela onde são feitas e distribuídas marmitex, a partir de alimentos doados. “No começo, eram cerca de duas mil marmitas por dia, de domingo a domingo”, diz Renato Varjão, presidente da organização.
Atualmente, o espaço funciona três vezes por semana, às segundas, quartas e sextas. “As doações caíram bastante e não temos mais condições de seguir diariamente. Estamos servindo de cem a 150 [refeições], no máximo”, afirma Renato. “Diminuiu a doação de proteína e estamos trabalhando com proteína de soja, tem dia que a gente não consegue cozinhar porque não tem gás.” A procura por comida, porém, não diminuiu.
Está muito difícil, Se continuar como está, a gente só tem algumas semanas de cozinha e vamos fechar. A fome tá aí e ela não espera, as pessoas estão passando fome de verdade (Renato Varjão, presidente da ONG Mover Helipa)
Outros projetos — Por outro lado, iniciativas de cultura e esportes de Heliópolis estão se reorganizando para uma retomada em 2022. É o caso do Cine Favela, criado por Reginaldo de Túlio, que desenvolve projetos de formação de atores, teatro e cinema desde 2003.
A pandemia do covid-19 reformou o caráter educacional do Cine Favela, principalmente com a divulgação dos cuidados de higiene, prevenção e apoio à vacinação. “Com perseverança e espírito de comunidade seguiremos em 2022 na missão da educação, da promoção da representatividade, da inclusão, da inserção, da participação, do acolhimento”, diz Reginaldo.
Mantendo todos os cuidados, o Cine Favela voltou a funcionar. Suas atividades são fundamentais para a socialização, principalmente entre o público da terceira idade. A programação inclui cursos, dança, culinária, horta, reciclagem, capoeira, exibição de filmes, debates, ações de inclusão digital, além dos concursos de miss e mister terceira idade. A sede agora oferece também atendimento psicológico e social.
Paraisópolis — A favela de Paraisópolis, na zona sul, comemorou 100 anos em setembro de 2021, no auge da pandemia, em um processo de adaptação e resistência. Era urgente encontrar soluções para garantir os protocolos de prevenção, como distribuição de máscaras, kits de higiene e reforço na alimentação.
“Os problemas históricos persistem e sabemos que a crise sanitária vai continuar e teremos que aprender a conviver com o Covid”, diz Gilson Rodrigues, presidente da União de Moradores e Comerciantes de Paraisópolis e membro da direção do G10 Favelas, reunião de líderes e empreendedores de impacto social de diversas regiões do Brasil.
De acordo com Gilson, a comunidade se reestrutura e busca geração de emprego, trabalho e renda em setores que não tiveram tantas perdas durante a crise nos dois últimos anos, como logística, construção civil e alimentação. “Temos um potencial incrível de desenvolvimento econômico em Paraisópolis. Algumas áreas, mesmo com a pandemia, estão surgindo empresas de logística, na área da moda, de construção civil, entre outras”, acrescenta.
A crise teve um brutal reflexo na economia de Paraisópolis, mas também levou à criação de projetos locais que viraram referência no País. “Durante a pandemia foram criados doze programas de mitigação da crise, que viraram exemplos e foram implantados em outros 16 estados”, conta Gilson. ‘A base da organização é a figura do presidente de rua, que é a pessoa responsável pelo acompanhamento dos programas em grupos de 50 casas, levando propostas de empreendedorismo, por exemplo.”
Além das dificuldades apresentadas pela própria pandemia, a comunidade de Paraisópolis tem de encarar problemas estruturais que o poder público não responde há anos, como a falta de água
Na avaliação de Gilson, em 2022 as soluções para os problemas coletivos da comunidade de Paraisópolis serão encontradas na união e na criatividade da população local. “Nos últimos períodos, o trabalho coletivo se fortaleceu muito e os moradores estão mais unidos e engajados em busca de transformações e dependendo cada vez menos do governo”, completa Gilson.
Um exemplo é que no ano passado, como o serviço do Samu de socorro emergencial, não entrava em diversas ruas da favela, os moradores se uniram para criar um modelo próprio de ambulância 24 horas por dia para casos graves. O serviço funcionou por cerca de seis meses.
Após a publicação deste texto, a Prefeitura de São Paulo informou em nota que tem projetos habitacionais para Heliópolis, com 240 unidades a serem entregues em 2024, e que entregou 50 unidades habitacionais em Paraisópolis, em setembro de 2020. De acordo com a nota, desde o início da pandemia o programa Cidade Solidária entregou 23,9 mil cestas básicas em Heliópolis e 12,4 mil em Paraisópolis. Na comunidade, foi criada também a plataforma Sampa+Solidária, para apoiar a gestão dos pontos de fornecimento e distribuição de refeições oferecidas pelos equipamentos da prefeitura e de instituições da sociedade civil. Em 2021, a administração diz ter promovido eventos de oferta de emprego em parceria com o G10 Favelas, com mais de 700 participantes e cerca de 250 encaminhamentos para vagas. Em 2020, foi inaugurado o Teia Heliópolis, uma unidade da rede pública de coworkings [espaços colaborativos abertos à população].