A hostilidade não é uma novidade nas plataformas digitais. A intolerância nas redes se manifesta no ato de anular, desmerecer e desqualificar outra pessoa; na linguagem tóxica; no linchamento. Em seu livro Discurso de Ódio nas Redes Sociais, o sociólogo Luiz Valério Trindade mostra que a mulher negra periférica é um dos principais alvos dessa violência, uma expressão do machismo e do racismo que se perpetuam na sociedade brasileira.
A obra de Trindade — doutor em Sociologia pela Universidade de Southampton, no Reino Unido — integra a coleção Feminismos Plurais, coordenada pela filósofa Djamila Ribeiro e publicada pela editora Jandaíra.
A obra retrata como o mito da democracia racial e a ideologia do branqueamento nutrem e estimulam ataques nas redes sociais.
A democracia racial parte do pressuposto que, no Brasil, as populações negra e branca desfrutam das mesmas possibilidades e oportunidades de desenvolvimento e ascensão social. Já a ideologia do branqueamento consiste na supervalorização e naturalização de pessoas brancas enquanto as negras são vítimas de adjetivos negativos.
A obra de Trindade analisa dinâmica racista nas plataformas digitais a partir de dados concretos. Segundo a organização não governamental Safernet, entre 2011 e 2014 os casos de ataques nas plataformas aumentaram de 2.038 para 11.090.
Em 2016, a Associação Brasileira de Comunicação Pública mapeou 32.376 menções ofensivas postadas no Facebook e no Twitter, entre os meses de abril a junho: 97,6% das manifestações foram de intolerância racial, preconceito e discriminação contra pessoas negras.
Em 2017, novos dados da Safernet revelaram a ocorrência de 63.698 publicações de discurso de ódio nas redes sociais brasileiras, sendo que um terço delas eram direcionadas a pessoas negras.
Nas eleições municipais de 2020, por exemplo, o Instituto Marielle Franco publicou uma pesquisa inédita feita com 121 candidatas negras de 21 estados e 16 partidos. O trabalho revelou que candidatas negras aos cargos eletivos — e não só —, foram alvos de inúmeros e agressivos ataques nas redes sociais
A persistência da agressividade — O discurso de ódio acontece nas plataformas digitais nas mais variadas apresentações. Pode estar explícito, sem filtros éticos e morais e em piadas que supostamente camuflam preconceito, misoginia, homofobia, racismo e intolerância religiosa. “Trata-se de uma prática que visa anular, desmerecer e desqualificar outra pessoa ou determinados grupos sociais”, diz o escritor Trindade.
Embora as agressões também ocorram no contato presencial, as redes têm a força da proliferação. “O conteúdo é capaz de continuar engajando usuários novos e recorrentes por até três anos após a publicação do post depreciativo. Figurativamente falando, é como se fosse um eco prolongado no espaço virtual”, aponta Luiz Valério.
O autor ressalta a sensação de impunidade dos usuários nas plataformas digitais. “A pessoa se sente livre de ‘amarras’ por acreditar na falácia de que a tela do computador lhe confere uma espécie de ‘proteção’ e, por conseguinte, haveria uma permissão implícita de poder desrespeitar qualquer pessoa e isento de consequências.”
Ao propor saídas possíveis, Trindade defende a responsabilização das corporações responsáveis pelas redes sociais; a educação de jovens, para que novas gerações não aceitem a naturalização do ódio; que o poder jurídico brasileiro acompanhe as tecnologias digitais e estabeleça marcos regulatórios mais condizentes com o contexto atual.
Passado, presente e eleições — Ao revisitar pontos da história do Brasil no pós abolição, Discurso de Ódio nas Redes Sociais busca conceitos históricos fundamentais para interpretar a dinâmica racial nos dias atuais. O autor analisa publicações nas redes sociais, em especial o Twitter, e mostra como os ataques estão relacionados com sexismo, além de questões de classe social e racial.
“Este livro oferece subsídios teóricos e conceituais para uma compreensão da centralidade das relações raciais na construção de nossa identidade nacional”, escreve Ceiça Ferreira, doutora em Comunicação, na contracapa do livro. “Investiga o histórico apagamento da presença negra na formação do país e problematiza a persistência da branquitude como padrão de modernidade, beleza e reconhecimento social”,
Mais importante que apoiar e reconhecer a causa, é vital para a mudança social e racial votar em mulheres negras, afirma Trindade. “A maior presença negra feminina periférica em cargos públicos colabora no fortalecimento da representação positiva da negritude brasileira e também no sentido de servir de referencial da amplitude de possibilidades de atuações e de carreira para as novas gerações de jovens negras”, diz o autor do livro. Mais expostas, essas mulheres costumam ser mais atingidas.
O autor acredita que é possível combater o ódio com informação, cultura, leitura crítica e escrita criativa. “Algumas iniciativas contribuem fortemente para percebermos e constatarmos que as redes sociais podem ser utilizadas de forma muito produtiva e construtiva”, afirma. O esperado, claro, é que as autoridades competentes estejam atentas aos casos de violência virtual e que os agressores sejam identificados e punidos. “Seria muito importante que os(as) candidatos(as) nas próximas eleições incorporassem o tema de combate ao discurso de ódio em seus debates, comícios e programas de governo, para que tenhamos uma efetiva mudança de cenário no futuro próximo.”
Não é fácil estabelecer uma relação direta entre o ódio nas plataformas digitais e o impedimento do acesso de mulheres negras a cargos administrativos públicos, admite Trindade. Ainda assim, o sociólogo afirma que as notícias falsas têm o poder de afetar muito mais o processo eleitoral. Nesse caso, as pessoas precisam ser vigilantes e “não acreditar cegamente em tudo que leem, sem ao menos comparar a informação em fontes diferentes, sérias e confiáveis”.