Essa história é sobre amor e isso faz toda a diferença quando o tema de uma reportagem é a população transgênero habitualmente associada, nos meios de comunicação, a números que tratam de mortes violentas e assassinatos.
Mostrar que a atuação de pessoas trans não está limitada a um cenário de perdas e violências é parte do que propõe o Transceda, projeto sociocultural comandado pelo comunicador social Vênuz Capel, de 23 anos, e pela caracterizadora, artista plástica e arte-educadora Raphaella Gomez, de 21.
Transgêneros não binários, Vênuz e Raphaella se encontraram em 2018 por meio de um aplicativo de relacionamentos, no litoral paulista, onde viviam, e desde então estão juntos.
“O nosso relacionamento me salvou. A maior parte do dia ficava na rua. Antes de conhecer a Raphaella era uma pessoa muito fechada, bebia demais para falar as coisas. Não sabia o que iria fazer da minha vida. Não estudava, não tinha nenhuma perspectiva e aí a gente se conheceu”, conta Vênuz.
Foram as conversas e a identificação sobre dificuldades e desafios que levaram à criação da iniciativa, pensada num primeiro momento como uma página no Instagram para falar sobre direitos e a importância do uso do pronome neutro, entre outros temas.
Porém a demanda dos seguidores por saber mais a respeito de como o casal lidava com questões de trabalho, educação e família fez com que o projeto crescesse e em um mês conquistasse mais de mil pessoas. Com isso, o Transceda passou também a promover ações sociais, a exemplo da Maria Bonita, que distribui kits de higiene e beleza à população trans em vulnerabilidade, o Transcestralidade e os Contos ancestrais. Esses dois recolocam no mapa a história de pessoas e sociedades que fogem da heteronormatividade.
Segundo Raphaella, o papel principal do Transceda, atualmente, é ser intermediário entre o público e as oportunidades. “Temos um papel cultural e educacional, de dar entendimento, dar voz e levar educação para que isso promova um processo efetivo de transformação, que abra portas e gere renda a pessoas como nós. Mostramos que a pluralidade não é uma coisa de agora, uma invenção do século 21.”
Histórias em transição — Criado em Praia Grande, no litoral paulista, Vênuz teve como grande referência a avó que o ensinou desde pequeno a conhecer seu próprio corpo, identificar abusos e assédios. Foi a partir dessas conversas que Vênuz, que então atendia por “ela” (de acordo com o gênero feminino, atribuído no nascimento), começou a questionar a identidade.
A convivência com pessoas LGBTQIA+ dentro do barracão de candomblé e do terreiro de umbanda, onde cresceu, permitiu que aos 14 anos já pudesse se afirmar como uma pessoa trans e trouxesse a ideia de que a aceitação seria mais fácil. Mas isso não se confirmou.
Mesmo o apoio da avó não era suficiente para superar a relação turbulenta com a mãe e, principalmente, na escola, da qual desistiu no início do ensino médio. Até conhecer Raphaella, nascida e criada no Jardim Castelo. O bairro fica na periferia de Santos, ao lado do Dique da Vila Gilda, maior aglomerado de palafitas da América Latina. “Filha de Ana Paula, uma mulher negra e mãe-solo”, Raphaella em muitos aspectos representou um resgate para Vênuz.
Com um mês de relacionamento, o casal foi viver junto — acolhido justamente por Ana Paula. Vênuz voltou a estudar, concluiu o ensino médio por meio da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e os projetos começaram a tomar forma.
Raphaella, por sua vez, conta que começou a se entender como alguém que não se reconhecia nem homem nem mulher quando tinha 15 anos e pôde contar com a parceria de Ana Paula, que comprava roupas e maquiagens. “No início havia o receio do preconceito, mas com o tempo ela viu que não tinha o que fazer, porque eu me maquiava para ninguém ver no ônibus, trocava de roupa na rua. Até que aceitou”, lembra.
Luta semelhante foi travada pelo reconhecimento no colégio. Foram dois anos para que o nome social fosse incluído na lista de chamada.
Com 14 anos, começou a fazer maquiagem, de maneira autodidata, dispondo-se a trabalhar em eventos como casamentos e festas de família. Foram os primeiros passos para a artista que atualmente atua em filmes e programas de TV como o Rolling Kitchen Brasil, exibido pelo canal GNT.
Ponto de afirmação — O Transceda propõe-se a ser um ponto também de afirmação num cenário ainda carente em diversidade. A primeira trans que Vênuz e Raphaella lembram de ter visto nas redes foi a youtuber Mandy Candy. Apesar de uma referência importante, parecia distante, por ser uma pessoa branca e aparentemente muito diferente do universo de vulnerabilidade que conheciam.
“As pessoas trans com as quais eu convivia estavam em situação de prostituição e sofrimento e eu dizia que não queria ficar assim”, diz Vênuz.
As lembranças do processo de transição que vivenciou reforçam a importância de programas que debatam, em tempos de ascensão do conservadorismo, a liberdade de gênero e de autoafirmação e permitam a transformação de toda a sociedade por meio do conhecimento. Isso passa por reconhecer o trabalho e a história construída por pessoas transexuais, e não exclui a necessidade de debater a transfobia e as dificuldades enfrentadas por quem foge aos padrões heteronormativos.
Sair de casa ainda desperta ansiedade, por causa do medo de agressão e por todo o preparo necessário que inclui faixas para esconder os seios ou acessórios que não deixem a barba à vista nem permitam reconhecer o órgão genital.
Em maio de 2022, o casal deu início a uma vaquinha com o objetivo de arrecadar recursos para a mastectomia de Vênuz. O valor não foi suficiente, mas a busca por viabilizar o procedimento segue por meio de ações como a exibição do documentário Ará, em que sua vivência em busca da cirurgia é compartilhada.
Apesar do processo transexualizador ter sido instituído no Sistema Único de Saúde (SUS) em 2008, a fila de espera segue muito longa e o acesso a pessoas não binárias que não desejam tomar hormônios é mais difícil.
Mas, acima de tudo, são as histórias de vida que valem a pena. “Todos falam sobre nossas mortes, todos trazem relato de mortes de pessoas trans, resolvemos falar sobre vida”, reforça Vênuz.
UMA CAUSA: LINGUAGEM NEUTRA Pessoas transexuais lutam para que o uso da linguagem neutra seja normalizada, com a utilização da letra ‘e’ ou ‘u’ ao invés do ‘o’ ou ‘a’, que determinam uma tendência de definição masculina ou feminina. Assim, a linguagem neutra defende como correto o uso de ‘todes’ ou ‘aquelu’, por exemplo. Já o emprego de ‘x’ ou ‘@’ não é considerado uma boa alternativa por não ser acessível a pessoas com deficiência que fazem uso de mecanismos de áudio.
MINIGLOSSÁRIO
→Transgênero: pessoa que se identifica com um gênero diferente do atribuído ao nascer
→Transexual não binário: não se identifica nem no gênero masculino nem no feminino
→Cisgênero: se identifica com o sexo biológico com o qual nasceu
→Heteronormatividade: imposição social para que as pessoas se comportem conforme os papéis atribuídos aos gênero de nascimento
Parabéns a elos por toda dedicação e luta porq nao deve ter sido fácil como não é fácil ate hoje.
Se eu estava desde começo com vcs é porq meu amor e a minha dedicação como mãe em vê-los tão focados e determinadas a luta l.g.b.t.g.i .+ são meu orgulhoso… eu como mãeceda… sempre com vcs.