O projeto Criança Pode Umbigar? Sim! distribuiria 1.500 cartilhas em escolas municipais de Capivari (SP), mas foi paralisado após ataques de grupos conservadores
Crianças entre 10 e 11 anos, cursando Ensino Fundamental nas escolas municipais de Capivari, cidade a 140 km da capital paulista, tiveram cartilhas educacionais recolhidas em setembro deste ano. O material continha informações sobre o batuque de umbigada, uma dança que tem raiz africana e nasceu no período colonial, em solo paulista, especificamente Capivari, Tietê e arredores, com a chegada de negros escravizados de origem bantu. Seu mote é a celebração da vida.
O projeto Criança pode umbigar? Sim! foi desenvolvido pela professora Lorena Faria e apoiado pelo programa de ação cultural do governo estadual, o ProAC , o Instituto Federal de São Paulo e o coletivo Diadorim Cultura Popular. Prevista para ser concluída em novembro, juntamente com o Dia da Consciência Negra, a atividade agora é alvo de um movimento de moradores que associam o batuque a uma religião de matriz africana e a sexualização de crianças. Por isso, foi interrompida,
As ações são lideradas por João Flausino (MDB), suplente de vereador na Câmara de Capivari e membro da igreja evangélica AD Brás Capivari. Ele protocolou um requerimento junto à prefeitura da cidade, em 23 de setembro, para encerrar o projeto, além de ter criado um grupo de WhatsApp para reunir pessoas contra a cartilha, em que na descrição diz que “em nome de Jesus” vão derrotar a “ação maligna” do batuque de umbigada, segundo print obtido pela reportagem.
Trazida pelos negros escravizados durante o período colonial, o batuque de umbigada é uma manifestação cultural afro-brasileira disseminada presente em diversos quilombos. A tradição africana se espalhou no interior paulista na segunda metade do século 19. Atualmente, o Batuque ainda resiste principalmente nos municípios de Capivari, Piracicaba, Tietê e Rio Claro.
BATUQUE DE UMBIGADA O batuque de umbigada é uma manifestação cultural afro-brasileira que existe no País desde a metade do século 19. Atualmente, o ritmo e a dança são preservados e cuidados nos municípios de Capivari, Piracicaba, Tietê e Rio Claro. Enraizada nas tradições de negros escravizados de origem bantu, a umbigada celebra a vida e dialoga com a ancestralidade. Em setembro, o Expresso na Perifa, em parceria com o Nós, Mulheres da Periferia, conversou com Dona Marta Joana, liderança da Umbigada de Capivari e fundadora do Quintal da Dona Marta. Leia aqui a reportagem.
Cultura e identidade — Lorena Faria, professora do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) há 15 anos e parte do Batuque de Umbigada no Quintal da Dona Marta, trabalha com relações étnico-raciais na escola. A especialista em docência para diversidade da educação básica, abordou em sua dissertação de mestrado as literaturas africana e indígena e como a cultura pode modificar a identidade de crianças no Ensino Fundamental. Já no processo de doutorado, aprofundou seus estudos no batuque de umbigada. “Me envolvi muito na comunidade do batuque com o Quintal da Dona Marta e passou a ser uma coisa de vida para mim, até culminar no doutorado”.
Movida por essa paixão pela manifestação artística e tradicional de Capivari, surgiu a ideia de produzir um material para ser distribuído nas escolas.
Criança Pode Umbigar? Sim! — O projeto busca transmitir às crianças a história do batuque de umbigada, apresentá-las às mestras de Capivari, muní-las de informação sobre cultura africana e, claro, ensiná-las a dançar. A ideia da cartilha era gestada antes do doutorado de Lorena, porque dona Marta sempre reforça em suas falas o desejo de envolver mais as crianças na cultura. Durante a pesquisa a ideia amadureceu e em 2021 a cartilha foi inscrita e viabilizada pelo ProAC.
Antes da distribuição das 1.500 cartilhas, Lorena coordenou a formação de professores. “Oferecemos formação para a questão das relações étnicas e reais”, explica a professora. “Abordar racismo dentro de sala é importante, porque precisamos criar e construir identidades positivas nas crianças pretas, mostrar a África das guerreiras.”
Nesse processo, a prefeitura de Capivari propôs para a câmara dos vereadores um projeto de lei (PL) — de certa forma, era esperado que ocorresse uma reação negativa de grupos conservadores. Assim, foi aprovada a Lei no 6.315/2022, que instituiu no município de Capivari a Semana Anicide Toledo. Dessa forma também pôde sustentar a Lei nº 4.499/2014, que celebra o Dia Municipal do Batuque de Umbigada, em 6 de setembro, aniversário da Mestra Anicide Toledo, além de apoiar a Lei Federal 10.639 de 2003, que prevê a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nas grades curriculares dos ensinos Fundamental e Médio.
O PL municipal foi aprovado na Câmara em agosto. No mês seguinte, algumas escolas da região receberam apresentações do batuque para as crianças. “Fomos convidados para mostrar nossa dança, nossa arte, falar com as crianças como se fosse um lançamento das cartilhas nas escolas”, afirma Lorena.
Ao todo, as atividades aconteceram em três escolas até que, articuladas por João Flausino, começaram as movimentações nas redes sociais contra o batuque de umbigada e sob a alegação de que a dança na realidade é algum tipo de religião que fere os valores da família cristã e poderia sexualizar as crianças. O suplente de vereador formalizou na prefeitura solicitação para interrupção imediata das atividades relacionadas ao batuque nas escolas e o encerramento da distribuição das cartilhas para as crianças.
Projeto tem amparo legal — A Lei de Diretrizes e Bases – Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, estabelece que o currículo escolar deve promover a valorização da experiência extra-escolar; vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais e consideração com a diversidade étnico-racial. Permitindo dessa forma, que as atividades relacionadas a Umbigada sejam realizadas em ambiente escolar.
Mesmo diante do amparo legal, o prefeito Vitor Riccomini (PSL) decidiu paralisar o projeto das cartilhas. Em vídeo publicado no Facebook de João Flausino, no dia 26 de setembro, o político afirmou: “o nosso compromisso com você, pai e mãe, é com o fortalecimento da família para que nós possamos amanhã ter cidadãos melhores, em momento nenhum o nosso governo estará fazendo qualquer conotação de cunho religioso dentro das escolas”.
Enquanto a questão não se resolve, as crianças perdem a oportunidade de aprendizado sobre cultura afro-brasileira. “A não aplicação desse material e de todo o planejamento que estava sendo desenvolvido é um prejuízo, especialmente para as crianças pretas e para as crianças que são membros do batuque”, diz Lorena.
“A não aplicação desse material e de todo o planejamento que estava sendo desenvolvido é um prejuízo, especialmente para as crianças pretas e para as crianças que são membros do batuque” (Lorena Faria, professora)
Nas movimentações para tentar reverter a decisão do prefeito, a professora participou de uma reunião na câmara municipal de Capivari para dar mais informações sobre o projeto aos vereadores, que estavam sendo questionados pela população local. Ela entregou uma cartilha a cada um dos presentes, e teve o apoio, por exemplo, de membros do Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de Piracicaba (Conepir), que classificou a situação como um caso de racismo. No mesmo dia, os vereadores assinaram um ofício solicitando que o prefeito recebesse Lorena e os demais envolvidos na cartilha em seu gabinete.
O ofício cumpriu seu objetivo e Lorena foi recebida pelo prefeito. Na reunião, segundo a professora, o mandatário afirmou que não viria a público novamente para informar uma eventual retomada do projeto das cartilhas, a fim de “evitar mais desgaste”. Acrescentou ainda que os professores envolvidos deverão prestar esclarecimentos aos responsáveis pelos alunos. Lorena conta que o assunto foi dado como encerrado e que as cartilhas continuam com distribuição suspensa.
“A gente está vendo a história se repetir”, desabafa Lorena ao se referir às ofensas que tem ouvido nas últimas semanas sobre o batuque de umbigada, que ocorrem desde que a dança começou a ser praticada. Os argumentos usados contra a tradição cultural são os mesmos: “dizem que é feitiçaria, que é macumba, que é maligno”. Por fim, conta que sente tristeza com a situação. “Ameaçaram queimar cartilha na porta da prefeitura.”
OUTRO LADO A reportagem tentou ouvir a prefeitura de Capivari, mas não teve resposta. Se houver alguma manifestação, será incluída.
Respeito, valorizo e gosto muito de Batuque e Umbigada, que nos anos 70, quando criança era levada por meus pais para assistir a dança e música no espaço culrural frequentado por afrodecendentes em Capivari, e espero que esse Prefeito e Vereador não confunda poder publico com disseminação de ideologia racista e intolerancia religiosa, que é crime.
Quero fazer uma observação nesta postagem, a questão de racismo pode ser descartada, até porque muitos que se posicionaram contra são afro descendente , o que foi solicitado é a paralização dos batuques nas escolas,pois as crianças não tinham como escolher se queriam ou não assistir as apresentações, os pais na maioria das vezes não foram avisados sobre as apresentações, com isso eram pegos de surpresas!
Eles tem total liberdade de fazer as apresentações em praças públicas ou até mesmo no centro cultural, assim terá a liberdade de ir só aqueles que quiserem compartilhar e aprender da cultura afro !
Essa é minha opinião!
Não há dúvida de que esse movimento de pais contra a umbigada, assim como os demais elementos da cultura africana, é fortemente inspirado no racismo estrutural e, sobretudo, na pobreza das famílias, cujas mentes são colonizadas pelas igrejas ditas evangélicas.
É RACISMO, SIM. Sou professora e a situação está ficando incontrolável com a verificação de conteúdo por parte de familiares que não sabem e não querem saber nada que desagrade “sua opinião” formada por grupos de whatsapp. Há perseguição de todo o tipo nas escolas por parte da comunidade e dos alunos aos professores. Assédio moral, no mínimo.
É lei. Não tem cabimento os pais questionarem ou terem que autorizar seus filhos de receberem uma educação antirracista. Não tem cabimento os pais autorizarem ou não de seus filhos de receberem conhecimento sobre a História de seu município e daquilo que constitui a História do país. Se fosse qualquer outra atividade, como Taiko (tambores japoneses) não passaria por isso. A questão é a manifestação de origem africana. As acusações descabidas da população e dos políticos reacionários são sim de cunho racista. Serem pessoas negras que fizeram isso é muito triste, e serem negros nao os isentam de reproduzirem lógicas racista. Temos, por exemplo, Sergio Camargo na fundação palmares criminalizando Zumbi. É exatamente por não termos uma educação antirracista é que isso continua acontecendo. Se não dermos a condição de produzir uma identidade positiva sobre a origem africana isso, opor-se a cartilha e o batuque continuará se reproduzindo. Era dever desses figuras públicos explicar aos pais que o que eles estão pensando negativamente sobreco batuque é um problema estrutural. Viva educação. Só ela pode fazer nosso país melhor. Capivari deveria se orgulhar desse projeto que é um exemplo nacional
Retaliação de cunho racista é o que foi isso. Tenho convicção de que se fosse chamado na escola qualquer outra atividade nada teria acontecido. Se fosse uma apresentação de TAIKO (tambores japoneses), se um rabino fosse a escola falar sobre a cultura e religião judaica ou algo do tipo. Do mesmo não faz nem cocégas nas famílias as crianças se prepararem para dançar quadrilha para as festas juninas, isso quando não dançam músicas da cultura de massa, de artistas que catam sobre relações adultas. É lei que as crianças aprendam sobre a cultura e história da áfrica. Como assim, os pais devem escolher? Não tem cabimento nenhum perguntar para os pais de eles querem que os seus filhos tenham uma educação antirracista e que sejam poupados de conhecer a história da cultura de seu município e da História do Brasil. Milhares de pessoas de país estudaram, chegaram ate seus doutorados, pesam educação por anos, determinam diretrizes de estudos, constroem grades curriculares e os pais não são consultados. Os pais não são consultados para seus filhos estudarem povos antigos; não são consultados para saberem a História do Brasil, a História política do Brasil e entre tantas outras coisas. A resistência a esse conteúdo é racismo sim. E é muito triste sabermos que a resistência a cultura afro-brasileira na escola foi feita por pessoas negras. Mas, isso em um continente colonizado, é infelizmente muito comum. Taí Sergio Camargo como um exemplo violento e muito triste dessa lógica racista executada pelo homem negro. É exatamente iniciativa como essas que poderão garantir um futuro menos racista. Se esses políticos e pais capivarianos tivessem passado por essa educação na escola não estariam retaliando a iniciativa, pelo contrário, estariam orgulhosos da iniciativa e a exibiriam como exemplo nacional, pois ela é e deve acontecer em todo território nacional e em todas as escolas. Essas pessoas conservadoras, que não querem que seus filhos recebam conteúdo sobre a cultura e História do Brasil devem procurar uma escola que não proponha isso. Agora não levar as crianças para escola no dia da apresentação pode ser uma escolha, mas será dado falta, pois os alunos estão perdendo um conteúdo importante e assim como todo conteúdo perdido terão que recuperar o que foi perdido. Espero que essa situação seja reparada logo e as crianças de Capivari tenham esse conteúdo