Globalizada e tecnológica, nova geração de índios brasileiros impõe sua voz nas discussões sobre mudança climática
Com reportagem de João Gabriel de Lima, O Estado de S. Paulo
Depois de emocionar a plateia na abertura da COP-26, na Escócia, a ativista indígena Txai Suruí desembarcou na COP-27, no Egito, na qualidade de produtora-executiva de um filme candidato ao Oscar. O documentário Território narra a saga da tribo Uruê Uá Uá contra os invasores de suas terras.
Para rastrear grileiros e mineradores ilegais, os Uruê Uá Uá começaram a usar drones e aparelhos de geolocalização. Obtiveram fotos e mapas que apresentaram na Justiça como provas contra os criminosos. “O filme não mostra apenas a luta dos indígenas, mas também o fato de que as populações tradicionais são essenciais para deter a mudança climática”, diz Txai.
Território recebeu 24 prêmios internacionais, foi exibido em 130 países e já passou por várias peneiras do Oscar. Txai agora deverá participar das sessões do filme para jurados da Academia, nos Estados Unidos e na Europa. O documentário foi exibido ontem no Brazil Climate Action Hub — o pavilhão da sociedade civil que, pelo terceiro ano consecutivo, reuniu os principais representantes brasileiros na COP, entre cientistas, empresários, ativistas e artistas. No coquetel que acompanhou a sessão, Txai apareceu com um cocar de penas de araras, gaviões e papagaios, aves típicas da região onde vivem os Suruí, nação vizinha aos Uruê Uá Uá em Rondônia.
No mesmo dia, no Pavilhão da Juventude, a cinco minutos de caminhada do Brazil Hub, o DJ Eric Terena levantava a plateia com sua música eletrizante. Entre os que se rendiam ao ritmo irresistível, poucos sabiam que se tratava de um trabalho exaustivo de pesquisa musical. Eric já viajou por mais de 60 tribos brasileiras para gravar sons e entender o papel da música em cada nação indígena. “Não me limito a gravar, estudo a cultura de cada território”, diz o DJ.
A música de Eric combina tradição e tecnologia. Sua composição mais pedida nas pistas dos diversos países em que se apresentou, Djuena Tikuna, mistura percussão da região do rio Solimões, baixo elétrico e ritmos da terra do DJ, Mato Grosso do Sul. Eric se apresenta usando um cocar de arara canindé, ave típica de sua região.
Nova postura — O filme de Txai Suruí e a música de Eric Terena são expressões culturais da nova postura dos índios brasileiros, principalmente os da geração mais jovem. Ela inclui uma participação internacional mais forte e o uso intensivo de tecnologia. Vale para a área da cultura e também para a política.
De acordo com Dinamam Tuxá, um dos líderes da Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (Apib), essa nova postura começou em 2019. “As instituições que nos protegiam começaram a ser desmontadas, e deixamos de ter voz no Brasil”, diz Dinamam, com seu cocar de penas de gavião — sua tribo, os Tuxá, é da Bahia, na região do Rio São Francisco, onde há muitos pássaros dessa espécie. “Resolvemos então levar nossa mensagem ao exterior.”
A primeira viagem levou uma comitiva da Apib a vários países europeus. Eles visitaram o Parlamento Europeu, na Bélgica, e também países como Alemanha, França, Espanha e Holanda. Nessa viagem inaugural, queriam alertar políticos e empresários para o fato de que muitos produtos consumidos na Europa eram oriundos de desmatamento em florestas tropicais. “Visitamos a Siemens [Siemens Energy, responsável pela produção de turbinas], que faz turbinas para hidrelétricas que destroem nossas comunidades, e criadores de gado na Alemanha e na Áustria, alimentado com soja cultivada em área desmatada”, diz Dinamam.
A União Europeia acabou de aprovar, em setembro deste ano, uma lei que pune empresas que usam insumos oriundos do desmatamento — o que Dinamam considera uma vitória do lobby da Apib. Eles não viajaram à Europa em 2020 por causa da pandemia, mas mantiveram contatos por zoom com políticos e integrantes do Parlamento Europeu.
Em 2021, a associação levou uma delegação de 40 pessoas para a COP-26, em Glasgow. Na COP-27, no Egito, os indígenas brasileiros participam de dezenas de eventos internacionais. Esta foi também a primeira vez que o tradicional pavilhão do Fórum Indígena teve mesas com tradução simultânea em português — o que possibilitou uma maior interação dos indígenas brasileiros com ativistas, empresários, políticos, militantes e seus pares internacionais.
“Nós ainda somos pouco ouvidos nas discussões sobre mudança climática, mas essa situação está mudando”, disse Marciely Tupari numa das mesas do Fórum Indígena. “E temos mesmo que ser ouvidos porque, além de cuidarmos da florestas, somos os primeiros a sofrer os efeitos da mudança climática. Na minha região já há mulheres que ficaram doentes por causa da contaminação dos rios, devido ao garimpo ilegal.”
A plateia multinacional do fórum irrompeu em aplausos. Marciely é uma das coordenadoras da Coiab, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, e pretende estudar Direito para atuar melhor nas causas que defende.
Comunicação — A fala de Marciely causou comoção porque ela tocou num dos temas mais discutidos na COP-27: o fato de que a mudança climática já chegou — e os países mais pobres são os que mais sentem seus efeitos. Isso é especialmente verdadeiro para os indígenas, que em geral vivem em regiões isoladas e em contato com a natureza. “No nosso território, em Mato Grosso, já não é mais possível colher milho por causa das tempestades e enchentes constantes”, disse Juliana Kerechu, nos corredores do Brazil Hub, vestida com a marca de sua nação – um cocar cor-de-rosa de penas de flamingo. “Além de fonte de alimentação, o milho é um componente importante de vários dos nossos rituais.”
A palavra de ordem para a nova geração das tribos brasileiras é comunicação. Os indígenas querem ser ouvidos e entendidos, de preferência no mundo inteiro — e também entender melhor as mensagens dos não indígenas. Tainara Kambeba, de 18 anos, foi convidada a participar da COP-27 pela Unicef, Fundo das Nações Unidas para a Infância, por sua habilidade na área.
Durante a pandemia, ela foi uma das responsáveis por passar as informações sobre a covid-19 para os habitantes de várias tribos — entre elas a sua própria, que vive às margens do Rio Negro, a quatro horas de barco de Manaus. A Unicef está formando uma rede de jovens comunicadores indígenas em cursos online. Tainara sonha em estudar Jornalismo para continuar traduzindo o mundo não-indígena para os indígenas de sua terra, e vice-versa.
Essa é uma terceira característica da nova geração de lideranças indígenas, além da inserção internacional e do uso da tecnologia. Eles criam seus próprios sistemas de comunicação e não querem depender do que chamam de “mídia não indígena”. Alana Marchineri, coordenadora da área na Coiab, alimentou freneticamente as redes sociais da brigada amazônica durante a COP-27. “Além de manter as nações em contato, as redes nos ajudam a mostrar para a população não indígena a realidade que estamos vivendo em nossos territórios, e como podemos contribuir para mitigar as mudanças climáticas”, diz Alana.
Eric Terena tinha uma programação quase diária como DJ na COP-27 mas não deixou de registrar cada passo dos indígenas na conferência com a equipe do Mídia Índia, um coletivo de comunicação fundado por ele. São de Eric Terena os vídeos que ilustram esta reportagem. Como em sua música, Eric combina aspectos culturais e políticos no Mídia Índia.
A totalidade dos indígenas entrevistados para a reportagem demonstrou otimismo com a mudança de governo no Brasil, e promete fazer cobranças, especialmente na área de demarcação de terras. “Minha música tem um lado de protesto, mas meu novo trabalho vai seguir uma linha mais alegre, refletindo o sentimento atual”, diz Eric. Seu próximo álbum, calcado em pesquisas musicais em vários territórios, deve chegar ao Spotify no início do ano que vem e já tem nome: Origens.