Uma reflexão sobre como o mais importante grupo de rap do Brasil contribui para a conscientização da população negra e periférica — e o orgulho de ser favelado
Eu me dei conta da importância dos Racionais MC’s na minha vida quando estava dentro da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e fui coagida a refletir sobre como eu, uma mulher negra periférica, conseguiu ingressar em uma das maiores universidades da América Latina, estudando a vida inteira em escolas públicas e sem fazer qualquer tipo de curso pré-vestibular. E foi na universidade que descobri a palavra “letramentos”, que é aprendizagem de leitura e escrita crítica em outros espaços sociais além do âmbito escolar.
Eu tenho algo a dizer
E explicar pra você
Mas não garanto, porém
Que engraçado eu serei dessa vez
(Voz Ativa, 1993)
Quando aprendi isso, entendi que fui letrada pelo rap, por meio das músicas dos Racionais MC’s. Me lembro de uma das primeiras vezes que eu ouvi Racionais MC’s. Foi nos anos 2000s, quando era frequente carros passarem na rua de casa ouvindo Vida Loka. Pr. 1 e Vida Loka. Pt. 2. Eu consigo fechar os olhos e lembrar da sensação de escutar o beat das músicas ecoando de esquina a esquina. O impacto da mensagem que essas músicas tinham sobre os meus vizinhos, meus amigos da rua ficaram registradas na minha mente.
Com letras repletas de denúncias e críticas às desigualdades sociais e raciais, mas que, ao mesmo tempo, possuem um tom de celebração e valorização do sujeito periférico, os Racionais MC ‘s contribuíram para a conscientização da população negra e periférica, fazendo com que nós construíssemos um orgulho por ser favelado e soubéssemos das nossas raízes e potências. Mais do que isso, os Racionais MC’s, por meio da oralidade, uma tecnologia ancestral e milenar, sensibilizaram, teorizaram e problematizaram questões sobre racismo, pobreza, violência policial, poder, dinheiro e até mesmo sobre masculinidades negras periféricas (basta lembrarmos da música Jesus Chorou).
Racionais MC’s possibilitou uma formação crítica que extrapolasse a escola, de tal modo que suas frases, versos e refrões ficassem internalizados em nossas mentes e corações, funcionando até como mantras e normas de comportamento (em Jesus Chorou, ouvimos: “Lave o rosto nas águas sagradas da pia/ Nada como um dia após o outro dia”; ou “Ei irmão nunca se esqueça/ Na guarda, guerreiro, levanta a cabeça, truta/ Onde estiver, seja lá como for, tenha fé porque até no lixão nasce flor”, em Vida Loka pt. 1)
O trecho acima foi selecionado não apenas porque a música me toca profundamente, sendo uma aula sobre colonialismo, escravismo e luta antirracista, mas também porque ela marca o lugar da enunciação daquele que fala. Quando pensamos no caso da língua portuguesa brasileira, a voz ativa faz parte do conjunto de vozes verbais e é utilizada para marcar que o sujeito da oração, enunciado, discurso ou frase é aquele que executa a ação, e não aquele que é objeto e sofre os efeitos da ação de forma passiva. Dito de outro modo: a voz ativa evidencia que o sujeito é ativo. No caso dos Racionais, Voz Ativa é uma forma de evidenciar o sujeito periférico que, ao denunciar as opressões que cercam a realidade que está inserido, faz um uso político de seu discurso em prol da conscientização.
O documentário Racionais: das Ruas de São Paulo pro Mundo, disponível na Netflix, é a coroação da trajetória cultural e política do grupo. Nele, mais uma vez a voz ativa se faz presente ao trazer os próprios integrantes narrando sua história e, consequentemente, colocando-se como sujeitos ativos. eles consolidam sua história e contam sobre ela com as suas próprias palavras. Por meio de cenas inéditas sobre o cotidiano do grupo, frases como: “Você se torna perigoso quando você fala o que eles não querem que você fale.”, nos lembra o porque considerarmos os Racionais MC’s grandes intelectuais do pensamento social brasileiro. A teorização do grupo parte da sua experiência/prática enquanto sujeito negro periférico e nos fortalece, no sentido de: (i) denunciar as violências, dominações, opressões e resistências do nosso cotidiano e ii) nos lembra que temos direito de sonhar, entendendo a margem como um lugar não só de vulnerabilidade e precariedade, mas também como um lugar de potência.
O documentário vai além da localização em uma linha do tempo da história dos Racionais MC’s, a cada cena é possível observar a ressignificação do grupo da maneira de ser e estar no mundo por meio da linguagem e como foi por essa ferramenta que os Racionais MC’s chegaram aonde se encontra.
O grupo tenta entender como foram capazes de fabular uma nova história para sua vida, vivendo em um contexto que não tinha abertura para isto. E é possível dizer que a resposta para essa indagação é a: ancestralidade. Os Racionais MC’s são a continuação dos passos daqueles que vieram antes e que mesmo que tentem apagar as nossas potências ou nos fazer esquecer das nossas riquezas, sempre terá uma pessoa que nos lembrará o quanto a nossa palavra e conhecimento tem força.
No documentário é evidente o quanto a força da coletividade teve e tem um papel fundamental na formação dos Racionais MC’s, e como a cultura hip-hop, especificamente no caso do rap, se constituiu em modos de construção e transmissão de saberes e informações.
Insisto em escrever sobre a importância de nos colocarmos enquanto sujeitos, pois foi uma das lições mais importantes que aprendi com o Rap e com os Racionais MC’s. A necessidade de falar por si próprio, ser protagonista das nossas histórias e passar de objeto a sujeito do conhecimento, significa afrontar um projeto colonial hegemônico que investiu diversas tentativas para a desumanização, invisibilização e silenciamento de negros e negras.
Ao afirmarem que “têm algo a dizer” e, anos depois, estrearem um documentário no qual eles próprios narram suas histórias, os Racionais MC’s rompem com o regime de autoridade discursiva, que historicamente garantiu a legitimidade dos discursos da branquitude, e quebram o silenciamento que foi imposto sobre nós. Ao falarem e se colocarem como sujeitos, os Racionais nos lembram que devemos ter a ousadia de falar e, a partir disso, sonhar novos mundos possíveis, pois somos grandiosos e capazes de acessar todo e qualquer lugar que ultrapasse o poder da imaginação.
Layne Gabriele, 23 anos, é formada no Programa de Formação Interdisciplinar Superior (ProFIS - Unicamp). Atualmente é graduanda em Licenciatura em Letras (Unicamp), articuladora social, pesquisadora da área de Psicolinguística e educadora popular