Você já ouviu falar sobre o conceito de aquilombamento? É um termo que se refere à criação de espaços seguros e de acolhimento para pessoas pretas e grupos marginalizados, como escreve Abdias Nascimento em Padê de Exu Libertador (1981), “sabes que em cada coração de negro há um quilombo pulsando; em cada barraco onde Palmares crepita”. Se você pensou que o conceito está relacionado aos Quilombos, acertou, mas existem diferenças.
Os quilombos, historicamente, eram comunidades formadas por pessoas negras que fugiam da escravidão no Brasil colonial. Esses locais eram autônomos e representavam uma resistência ao sistema opressor vigente na época. Recentemente, o Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) publicou uma pesquisa feita em 2022, em que cerca de 1,3 milhão de brasileiros se identificam como quilombolas. Essa foi a primeira vez que o Censo incluiu esse grupo.
Precisamos olhar os quilombos no que são, não apenas no que foram, como afirma a arqueóloga Pernambucana Ana Dindara: “Os quilombos são construções que dão certo e garantem a existência e sobrevivência do povo preto”. A arqueóloga ressalta a importância do Censo para mostrar a imensidão dos territórios quilombolas e mostrar outra história sobre o Brasil.
Segundo o IBGE, existem 2.300 agrupamentos quilombolas no país, dos quais cerca de 400 têm suas terras demarcadas, de onde nascem as práticas de aquilombamento. O aquilombamento está em todo o processo de organização da população negra. Para Ana Dindara, aquilombar é mais que um ato, é uma ação de transformação de pertencimento da identidade preta. “É a possibilidade de nos unir e articular as nossas urgências enquanto uma população que também é pilar da história do Brasil.”
Experimentando o aquilombamento
É bebendo dessa referência e da própria experiência sentida que surge a Travada, um espaço multicultural feito por pessoas trans, moradoras das periferias de Araraquara, interior de São Paulo. Para a realidade de um corpo trans, estar em grupo, ou seja, “aquilombada”, é uma estratégia que possibilita criar espaços seguros, de apoio mútuo e uma forma de enfrentar as violências diárias.
A Travada nasceu em 2018, como uma festa, uma ideia de ocupar o interior paulista que carecia de eventos voltados para pessoas LGBTQIAP+, que como de costume saíam do interior para ter acesso a espaços de cultura no centro de São Paulo. E foi entre essas idas e vindas, conhecendo espaços de aquilombamento e acolhimento, que Vita Pereira, 26, moradora de Araraquara e uma das fundadoras da Travada, teve a ideia de iniciar as festas.
Vita é uma travesti preta que nasceu em Minas Gerais e se criou pelas periferias de São Paulo, vivendo processos de aquilombamento, “que acontecem entre os becos e vielas”, como ela mesma narra. Foram essas experiências que a motivaram a ser quem ela é, e sem a sua comunidade, a Vita Pereira poderia nunca existir, isso porque quem quer se aquilombar não está só procurando sobreviver mas ser plenamente quem é.
Em 2020, a Travada teve de se adaptar e olhar para outros aspectos do aquilombamento, para além das festas. Durante a pandemia, o movimento de estar em coletivo foi mais que necessário, uma vez que o lockdown e o descaso com a saúde, por parte do ex-presidente Jair Bolsonaro, as levaram a cultivar espaços para se “curarem” das dores do mundo e se cuidarem, primeiro de forma virtual, pois assim como nos Quilombos que lutam para terem suas terras registradas, ter um espaço físico para se aquilombar necessita de tempo e muita luta.
A arqueóloga Ana Dindara, que pesquisou o Quilombo dos Palmares em seu TCC, conta que a tecnologia é de extrema importância para o aquilombamento, é uma estratégia de aproximar quem está longe e a comunicação é uma das principais ferramentas dos quilombos, através dessa tecnologia que esses grupos se organizam nacionalmente. E que na pandemia serviu como meio de denúncias e cuidado.
Por mais que aquilombar seja algo maravilhoso, os desafios são tão grandes quanto os sonhos ali presentes. Manter o espaço físico e com pouco dinheiro, principalmente para iniciativas fora dos centros onde não tem distribuição de renda pública para a cultura é uma batalha. A solução encontrada pela Travada foi usar a arrecadação das festas para manter outros projetos.
Os frutos de trabalhar em conjunto, e de se aquilombar abrem diversos caminhos para a Travada, foram residências artísticas, oficinas de estudos sobre Carolina Maria de Jesus, Madame Satã, ensino de práticas de costuras, e não para por aí. “O sonho da Travada é abrir uma escola livre de artes e culturas. E assim demarcar o território Travada como um espaço de resistência e vida”, pontua Vita.
Em suma, falar de aquilombamento é olhar para uma tecnologia ancestral que sobrevive até hoje dentro das comunidades, periferias e de espaços como a Travada, e que não são replicados em larga escala, porque temos um olhar para os povos quilombolas como atrasados, como conta Ana Dindara: imagine agora, uma sociedade aquilombada que valoriza as suas potências e que busca viver com qualidade. Exemplos já existem.
que os aquilombamentos sejam cada vez mais fortalecidos. uma baita ferramenta de estar em coletivo. a maneira mais eficaz de sobreviver. obrigada Sanara Santos por esse texto 🙂