A história da formação do território brasileiro, marcada pela propriedade privada da terra, revela as desigualdades históricas. Desde a época da conquista, quando as terras passaram para o controle do Rei de Portugal, até as atuais questões, como as Sesmarias e a concentração de latifúndios, a desigualdade persiste.
A continuidade dos privilégios dos latifundiários e do trabalho análogo ao escravo contrasta com a negligência em relação à reforma agrária como política governamental. A desigual distribuição de terras e recursos agrícolas está ligada à extrema pobreza em que muitos brasileiros vivem, e a concentração de terras nas mãos de poucos é evidente no último Censo Agropecuário do IBGE (2017), em que 1% das propriedades ocupa quase metade da área agrícola.
Uma das consequências das enormes desigualdades no acesso à terra no Brasil têm impactos significativos no desenvolvimento sustentável e no combate à pobreza, além de expor as violências no campo. A Comissão Pastoral da Terra tem sistematizado esses dados há 38 anos, recentemente lançando os Cadernos de Conflitos no Campo 2022, que revelam que o Brasil teve em média um conflito por terra a cada quatro horas em 2022, totalizando 2.018 casos no ano, incluindo 211 ocorrências e 60.000 pessoas afetadas na Bahia.
Bernadete Pacífico, Mãe Bernadete, presente!
Maria Bernadete Pacífico, de 72 anos, era líder religiosa do Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho. Além disso, era ativista social, Coordenadora Nacional da CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos) e foi Secretária de Política e Promoção da Igualdade Racial do Município entre 2009 e 2016. Mãe Bernadete, como era conhecida, foi assassinada na frente dos netos, no seu quilombo, território sagrado, após vivenciar o eterno luto da perda do seu filho para a mesma luta que ceifou a sua vida.
Em reunião com a presidente do Supremo Tribunal federal (STF), Rosa Weber, em julho deste ano, na comunidade Quingoma, em Lauro de Freitas, a liderança denunciou as ameaças que ela e os moradores do quilombo sofriam, possivelmente do mesmo grupo criminoso que matou o seu filho, Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, conhecido como Binho do Quilombo, em 2017.
Com 289 famílias assentadas, o Quilombo Pitanga dos Palmares possui 854,2 hectares, que enfrentam imensos conflitos contra a especulação imobiliária industrial. O território do quilombo ainda não foi titulado, apesar de já ter sido reconhecido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) desde 2017 e de a comunidade possuir certificação da Fundação Palmares, o que torna a área vulnerável e, como resultado, alvo de uma ambição violenta e desprezível.
Mãe Bernadete certamente estará presente no Caderno de Conflitos do Campo do próximo ano e o seu assassinato, o assassinato de uma Ialorixá e quilombola, é uma das facetas dos conflitos no campo que produz, dor, miséria e também o epistemicídio. O estado que inviabiliza o acesso à terra é o mesmo estado omisso que produz a ocultação das contribuições culturais e sociais promovidas por comunidades tradicionais e do campo e inviabiliza o acesso à terra, ao bem-viver e à re(existência) dos povos.
A crueldade com que Mãe Bernadete foi assassinada (14 tiros e com disparos à queima-roupa), torna o crime ainda mais cruel e exige rápida e firme resposta das autoridades, mas também da sociedade, em forma de mobilização e reafirmação da luta por paz e pelo direito à terra, contra o racismo e a intolerância religiosa. Como diria a professora Guiomar Germani, da UFBA, ”É a sociedade, em última instância, que através de sua correlação de forças, de sua ação ou omissão, vai escrever os próximos capítulos dessa história. Teremos vontade política, coragem e força para transformá-la?”
O fato é que Mãe Bernadete continuará presente na luta e na força que emanou de uma mãe preta, quilombola, que enfrentou todas as adversidades na busca por justiça e na defesa da memória e da dignidade de seu filho, além da garantia dos direitos humanos e do território.
Ontem (27/08), mais um jovem quilombola foi assassinado: José William Santos Barros, de 26 anos, mais um que entrará para estatística da urgência de uma solução jurídica definitiva sobre a posse dos territórios tradicionais, o único meio para proteger definitivamente quem defende os territórios e o meio ambiente. Enquanto esse momento não chega, quem defende os defensores? Mãe Bernadete, presente!
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Ísis Fernanda Salles é graduanda em Geografia na Universidade Federal da Bahia e pesquisadora de conflitos socioterritoriais, justiça energética e socioambiental no Grupo de Pesquisa GeografAR. Ísis é natural de Salvador e ganhou destaque no cenário nacional como jovem liderança climática e socioambiental. A ativista é estagiária no WWF-Brasil e tem uma ampla atuação no Terceiro Setor, como no Engajamundo, onde foi coordenadora do Grupo de Trabalho sobre os ODS. Para ela, não há garantia de um futuro sustentável se a luta ambientalista não tiver alinhada com a luta antirracista e as lutas de gênero e classes.
Excelente abordagem de Isis Fernanda Sales, sobre o assassinato de Mãe Bernadete. Esclarecedor, chamando a sociedade para assumir o seu papel de cobrança e enfrentamento.