Meninas que cursam o 5º ano do ensino fundamental na rede pública de educação fazem mais tarefas domésticas do que os meninos. Por volta dos 10 anos de idade, 88% delas afirmam trabalhar dentro de casa, enquanto 76% dos meninos dizem fazer o mesmo.
Levantamento feito pela Gênero e Número a partir de dados do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), de 2021, revela também que 20% dos meninos e 12% das meninas trabalham fora de casa.
Segundo especialistas, o problema do trabalho doméstico não são as pequenas tarefas que comportam a capacidade etária, como arrumar os brinquedos, mas há uma linha tênue entre parceria e responsabilidade, que pode comprometer a infância e o futuro da criança.
Para Quéli Anschau, professora de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), as meninas são responsabilizadas por tarefas invisibilizadas socialmente, que envolvem o cuidado da casa e de pessoas. “O menino vai dizer ‘eu ajudo’, mas a menina tem a responsabilidade de fazer”.
Cuidar dos irmãos menores, segundo Anschau, é um exemplo de que a criança está sendo responsabilizada precocemente por uma função que não é dela. A divisão de tarefas por gênero desde o início da vida vai impactar na formação superior, uma vez que as mulheres acabam sobrerrepresentadas em cursos relacionados ao cuidado, explica a assistente social. “Uma criança de três anos pode levar o talher da mesa para a pia. Uma criança de cinco, o talher e a xícara. Uma criança de 10 anos, pode tirar a mesa. A questão é que não dá para largar a criança sozinha fazendo isso, porque ela vai sendo adultizada”.
Outros estudos, como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua) sobre Outras Formas de Trabalho, demonstram que as mulheres são responsabilizadas por tarefas mais rotineiras, como lavar a louça e cozinhar, enquanto que os homens fazem tarefas mais esporádicas, como limpar o quintal e jogar o lixo fora.
Na avaliação de Raquel Lima, professora de sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), esse padrão se inicia logo na infância e penaliza muito mais as meninas do que os meninos.
“Não se trata de dizer que as crianças de 10 anos não devam ser ocupadas com pequenas tarefas no ambiente em que estão colocadas”, reforça Lima. “O problema são as rotinas que demandam tempo considerável e que competem com o descanso, lazer e contraturno dedicado à escolarização básica”.
Na divisão social do trabalho por gênero, os meninos acabam responsabilizados pelo trabalho fora de casa, pois precisam compor a renda familiar, especialmente entre as famílias mais vulneráveis. As meninas, lembra Raquel Lima, já estão ocupadas com as tarefas de casa, preparando o jantar para o adulto quando ele chegar, por exemplo.
“Podemos fazer, sem extrapolar, uma hipótese de contextos familiares nos quais a escassez de rede de apoio e a sobrecarga de tarefas recaem em determinados grupos sociais. Há uma sobrerrepresentação de crianças negras em famílias mais pobres, monoparentais, sobretudo com chefia de mulheres, que têm mais chances de ser ocupadas por essas tarefas”.
Ao menos 13% das crianças que responderam ao questionário do Saeb não preencheram ou não quiseram declarar o quesito raça. Ao considerar apenas os casos em que essa informação está disponível, os dados mostram que 24% dos meninos pretos trabalham fora do domicílio, enquanto 18% dos brancos realizam essas atividades.
Trabalho afeta desempenho escolar – Os dados do Saeb também indicam o impacto negativo do trabalho no desempenho escolar das crianças. Em comparação com estudantes que não trabalham fora de casa, os que precisam realizar esse tipo de atividade têm notas 13% mais baixas em Língua Portuguesa e 8% mais baixas em Matemática.
Segundo Lima, o trabalho infantil fora de casa é um dos fatores que mais impacta na evasão escolar e na reprovação, porque ocorre de forma muito precária e compete com o tempo de estudo.
A socióloga alerta que, no caso das famílias mais vulneráveis, a responsabilidade é também do Estado, que deve contribuir para a rede de apoio com mais vagas em creches, centros de referência social mais atuantes, opções de contraturno escolar qualificado e outras políticas públicas.
Trabalho artístico é exceção – O artigo 403 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) diz que é proibido qualquer trabalho a menores de 16 anos. A única exceção é para a condição de “aprendiz” a partir de 14 anos. No entanto, esse trabalho não pode afetar o desenvolvimento do adolescente e nem a frequência escolar. A Constituição Federal também proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 anos.
Além do trabalho de aprendiz, a única exceção é para o trabalho artístico, prevista na Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil. Assim como a OIT, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina a necessidade de autorização judicial para esse tipo de atividade.
Outra convenção da OIT, a 182, sobre as piores formas de trabalho infantil, regulamentada no Brasil, também proibe o serviço doméstico que demande esforço físico intenso, isolamento, abusos e outras sobrecargas físicas e mentais.
Para Sandra Regina Cavalcante, advogada e pesquisadora de direitos da infância pela Universidade de São Paulo (USP), o problema está na falta de regulamentação da atividade artística e de políticas públicas de orientação tanto do mercado quanto das famílias sobre os direitos dos artistas mirins.
“A regulamentação da atividade seria uma lei especial para explicitar um parâmetro mínimo de proteção, como acompanhamento psicológico, uma conta poupança [para que a criança possa usufruir do dinheiro quando adulta] e a proibição de trabalho que atrapalhe a escola”, exemplifica Cavalcante, que estudou o trabalho infantil desempenhado por artistas como Larissa Manoela.
Como o trabalho artístico não é regulamentado, cabe ao juiz definir os limites ao expedir a autorização. A pesquisadora avalia que o deslumbramento social com esse tipo de atividade leva os responsáveis pela criança a não se dar conta das consequências.
“Quando um filho quer pôr o dedo na tomada, a gente não deixa porque tem certeza das consequências. Mas os pais não têm noção do que vai implicar o comprometimento daquele contrato assinado. Vai haver um dia em que a criança vai estar com febre, chorosa, e os pais vão ter que exigir que ela cumpra o contrato para não receber multa”, adverte a advogada.