São mulheres trabalhadoras que se encontraram na dor. Elas reivindicam a memória de seus filhos, dando nome e rosto às estatísticas. Também cobram investigação e pressionam o Estado em diversas instâncias governamentais, na intenção de revelar a verdade sobre cada morte.
Um desses movimentos é o “Mães em Luto da Zona Leste” (MLZL). Sua gestação começou em novembro de 2015, a partir da atuação de Solange de Oliveira Antonio, mãe de três filhos, moradora de Sapopemba, na periferia da zona leste da cidade de São Paulo.
Oito meses antes, no dia 3 de março de 2015, um dos seus filhos, Victor Antonio Brabo, foi morto aos 20 anos de idade por André Pereira, policial civil do Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos (Garra).
“Isso aconteceu durante uma saidinha de banco, no bairro de Perdizes, na zona oeste de São Paulo, na avenida Afonso Bovero. Depois de dois anos, consegui as filmagens da câmera de segurança do banco. Meu filho não fez nenhum ataque ou ameaça, ao contrário do que o policial disse no Boletim de Ocorrência. O Victor tentou correr, mas tropeçou e caiu no chão, se encolheu, protegendo a cabeça, ergueu uma das mãos mostrando que estava se rendendo, e levou três tiros, um na face e outros dois tiros no ombro e na lombar. Não resistiu”, conta a mãe.
Em entrevista ao Expresso na Perifa, Solange fala sobre sua trajetória e reforça a dificuldade em ver uma “cadeira vazia” na mesa de sua casa onde a família se alimenta.
“Meu filho estava errado, mas deveria ser julgado pela Justiça. O policial deu sozinho a sentença de morte para ele. Ele foi o promotor, o jurado, o juiz. São várias as violências vividas. A bala dos policiais mata e a caneta do promotor também pode matar quando decide pelo arquivamento dos processos, como foi o caso do meu filho.”
Unidas pela dor – Passados alguns meses da morte de Victor, Solange começou a fazer postagens no Facebook, na expectativa de conhecer outras mães, saber o que estava sendo feito em relação à memória e à reparação das mortes de jovens nas periferias.
“As primeiras conversas aconteciam na minha casa com as mães que eu conhecia nas redes sociais. Depois, passava a acompanhá-las no DHPP (Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa), na Defensoria Pública e na Corregedoria, para mostrar órgãos públicos onde poderiam cobrar justiça e investigação”, detalha.
A página do Mães em Luto da Zona Leste foi criada no Facebook em maio de 2016, data que marca o início do movimento. Durante a construção dessa organização, o Centro de Direitos Humanos de Sapopemba “Pablo Gonzáles Olalla” (CDHS) se tornou um espaço de apoio e de encontro das mães da região, assim como de outras localidades.
O movimento cresceu e atualmente é formado também por mães que moram em bairros como Capão Redondo, Jardim Brasil e Bom Retiro. Todas, porém, encontram-se na zona leste para as reuniões. O Mães em Luto da Zona Leste integra ainda a coordenação da Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado, que realizará seu sétimo encontro em maio de 2024, no Recife.
Sonho realizado – Do movimento criado por mães que tiveram seus filhos mortos pelo Estado, nasceu o livro “Mães em Luta”, de 144 páginas, escrito por sete mulheres e publicado no ano passado pela editora Fábrica de Cânones.
A obra fala da história dos jovens mortos e de suas famílias, dos casos que foram arquivados, de maus tratos em instituições como o DHPP, e faz uma homenagem às “Mães de Acari”, movimento que protagonizou a luta por justiça após a Chacina de Acari, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1990.
“Tínhamos o sonho de escrever um livro sobre a história de nossos filhos e a injustiça das mortes de tantos jovens. Nossos filhos tinham muito em comum, em sua maioria negros, da periferia, com muita sede de vida”, afirma Solange.
O primeiro lançamento da obra ocorreu em novembro de 2022, no auditório do Centro Educacional Unificado (CEU) Sapopemba. Em abril deste ano, o livro foi lançado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). O movimento planeja novos debates e lançamentos em 2024, em espaços como a Universidade de São Paulo (USP), a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) e a Câmara dos Deputados.
Filho torturado – Aos 63 anos, Marcia Yara Conti ainda enfrenta a dor da perda de seu filho adotivo, Peterson Conti Senoreli, morto aos 21 anos, na região do Itaim Paulista, na zona leste de São Paulo.
Marcia, que hoje coordena o Movimento Mães da Leste Independente, afirma que Peterson foi espancado até a morte por Policiais Militares do 29º batalhão da Força Tática, em 18 de março de 2015.
Durante a abordagem, relata, os policiais solicitaram um documento de seu filho, apelidado de forma carinhosa pela família de “Renatinho”. Ele apresentou sua certidão de nascimento, porém, ao ser questionado sobre o nome dos avós, não soube responder.
“Foi nesse momento que os policiais iniciaram atos de tortura no local, envolvendo socos, pontapés e choques elétricos. A sessão de tortura durou cerca de 40 minutos, com meu filho deitado de bruços, recebendo choques, conforme pessoas relataram. Um trabalhador de um depósito nas proximidades viu tudo, nos contou, mas se recusou a testemunhar por medo”, diz.
Uma segunda pessoa próxima ao local da tortura filmou a agressão policial contra Peterson e foi incluída no programa de proteção a testemunhas. O caso tramita há oito anos e sete meses na 4ª Vara do Fórum Criminal da Barra Funda.
À frente do movimento de mães, criado no final de 2016, Marcia defende o uso de câmeras nos uniformes policiais em São Paulo, sem a possibilidade de desligamento, a fim de assegurar punições imediatas caso isso aconteça.
“Se tivessem câmeras nas roupas daqueles policiais no dia da abordagem, teria respostas sobre o que ocorreu com meu filho durante as três horas entre o local da abordagem e a chegada dele ao hospital, em um trajeto que duraria apenas um minuto de carro”.
Para ela, a atuação da polícia em todo o território periférico costuma ser “violenta” e “truculenta”.
“Temos policiais repletos de preconceitos raciais e sociais. Nossos jovens são vistos como futuros marginais, dando à polícia um certo ‘prazer’ de matar e de criminalizar, como se houvesse pena de morte em nosso país”, lamenta.
De acordo com Marcia, mesmo diante desses desafios, o movimento segue organizado e conta com a participação de 23 mães e familiares de diferentes bairros da periferia da capital paulista.
“Enfrentamos diversas dificuldades em nossa organização, muitas vezes devido a mães que trabalham e outras que lidam com problemas de saúde mental. Apesar disso, nosso grupo se esforça para se reunir regularmente, promovendo encontros de acolhimento”, conclui.