Um incêndio destruiu um espaço sagrado de matriz africana no bairro Vila Lola, na periferia da zona sul da cidade de São Paulo, em agosto deste ano. A Tenda Caboclo Mata Virgem e Mestre Zé Pilintra, fundada pelo babalorixá Dayvid Robert de Almeida, promove rituais de Umbanda e de Jurema de forma gratuita e aberta ao público há 20 anos no local.
O fogo começou após a ruptura da válvula de segurança de um botijão de gás. A falta de água na região dificultou os esforços da população em tentar conter o fogo, iniciado às 21h40. O Corpo de Bombeiros levou 40 minutos para chegar ao local e as chamas foram controladas por volta das 23h30. Não houve vítimas.
O acidente culminou na destruição total do terreiro e de parte das residências das famílias que moravam nos dois andares inferiores e zelavam pelo espaço. O prejuízo material foi estimado em 100 mil reais. Até o momento, doações em dinheiro e material de construção atingiram cerca de 35 mil reais, visando a reforma do espaço.
Neste mês, o terreiro amplia sua mobilização com uma campanha de doações para conseguir finalizar a reconstrução desse espaço que, além de atender gratuitamente as pessoas da comunidade, desenvolve ações sociais com distribuição de alimentos e roupas às famílias pobres da região.
Em entrevista ao Expresso na Perifa, o babalorixá Dayvid explica que as práticas religiosas afro-brasileiras e indígenas desempenham um papel crucial nas comunidades periféricas. Segundo ele, essas populações foram historicamente deslocadas para regiões pobres e afastadas dos bairros centrais das cidades, resultado de um longo período de escravização no Brasil.
“A Jurema e a Umbanda são cultos que se completam. Ambas falam sobre o respeito ao meio ambiente e têm a trajetória de honrar os nossos ancestrais. Essas religiões dão suporte aos povos mais oprimidos dentro de uma estrutura coronelista que vivemos até hoje. Manter o culto vivo é uma forma de resistência e de respeito àqueles que nos antecederam. O nosso ‘encantado’ é a nossa natureza. Sem a natureza, não há culto”, afirma.
Para o babalorixá, essas tradições não apenas resistem nas periferias, mas também preservam a história e a memória, desafiando as tentativas de apagamento do povo negro e das populações indígenas.
Compromisso social – Além de cultuar tradições africanas, o terreiro promove ações sociais em diversos bairros da região há 15 anos. O trabalho social inclui doações regulares de cestas básicas, de alimentos em geral e roupas para as famílias necessitadas, bem como a distribuição de brinquedos e doces às crianças.
Em dezembro de 2022, o terreiro alcançou um marco importante ao mapear e cadastrar 600 famílias carentes do entorno, uma média de 3 mil pessoas. Na ocasião, o grupo coordenado pelo babalorixá conseguiu distribuir 460 sacolas contendo legumes, verduras e frutas, além de 800 brinquedos para as crianças.
Essas iniciativas foram possíveis por meio da ajuda de parceiros e empresas locais. “Buscamos apoio de parlamentares, do governo e da prefeitura. Todos dizem compreender a situação de pobreza das famílias, mas nada avançou na prática”, desabafa o líder religioso e comunitário.
Em média, aproximadamente 15.000 pessoas foram beneficiadas nos últimos 15 anos pelas ações sociais promovidas pelo grupo que compõe o terreiro. A expectativa em 2024, segundo o babalorixá, é alcançar arrecadações que contemplem o número total de famílias mapeadas.
Mesmo após o acidente no terreiro, os trabalhos sociais não pararam. O mais recente ocorreu em 23 de setembro de 2023, quando foram entregues 80 marmitex e 400 sacolas de doces durante as festividades de ‘Cosme e Damião’.
Uma das beneficiadas com essas doações foi Aldecina Barbosa dos Santos, representante das comunidades da Fumaça e da Neblina, na zona sul da capital.
“São famílias com quatro, cinco crianças, com pessoas desempregadas, passando fome. O poder público está distante da gente. Neste ano, uma parte da comunidade passou por uma enchente horrível, os barracos foram destruídos, perdemos tudo. Dayvid e todo o grupo do terreiro nos ajudaram muito com doações de móveis, de roupas, sapatos e comida”, relata.
Aldecina destaca a relevância da solidariedade no atendimento às necessidades básicas das famílias da região. “A Fumaça e a Neblina continuam sobrevivendo como dá, as famílias do Leblon já foram tiradas do local, a prefeitura de São Paulo derrubou os barracos e deu auxílio aluguel de R$400. O que dá para fazer hoje com esse valor?”.
Moradores dos bairros Jardim Monte Líbano, Guacuri, Morro dos Macacos (próximo à Avenida Alda) e Sete Praias (Comunidade da Ferradura) também foram beneficiados com as doações organizadas pelo grupo comandado pelo babalorixá em parceria com a Associação dos Moradores Dona Bimba Monte Líbano.
“Estamos no fundão da Pedreira, já somos os últimos bairros, na divisa de São Paulo com Diadema. O poder público só diz ‘não’ aos nossos pedidos. Já buscamos as secretarias de Cultura, de Esporte, de Assistência Social, mas a ajuda deles é sempre burocrática, alegam que nunca têm recursos, colocam a gente em uma fila de espera e nunca chega a nossa vez”, ressalta o presidente da associação, Amilton Chaves Mineiro.
Segundo ele, os projetos sociais, especialmente os voltados para crianças, ocorrem há mais de uma década, fruto de parcerias com o terreiro, estabelecimentos comerciais e outras organizações comprometidas em contribuir com as comunidades.
” O tempo da prefeitura não é o tempo da periferia. Tem gente com fome de comida, de moradia e de lazer. É urgente.”, protesta.
Campanha de doação – A campanha para a reconstrução do terreiro e apoio às ações sociais podem ser conversadas pelo endereço: juan.capoeira009@gmail.com. Outra alternativa é a plataforma ‘Vakinha‘, onde apoiadores podem fazer doações pela internet por meio da campanha ‘Tenda de Umbanda Caboclo Mata Virgem e Mestre Zé’. Todos os valores arrecadados serão exclusivamente direcionados às reformas e ações sociais do terreiro. As prestações de contas serão publicadas no perfil do Instagram do Terreiro.
O espaço, à resposta da Prefeitura de São Paulo sobre o caso, segue aberto.