Conforme os graus sobem nos termômetros da zona leste de São Paulo, a pressão diminui nos canos subterrâneos que levam água até as casas do bairro Nossa Senhora do Carmo, periferia da zona leste de São Paulo, onde moro. No domingo mais quente dos últimos 19 anos, as torneiras secaram nas casas dos trabalhadores que pretendiam aproveitar o dia de folga para lavar a roupa e limpar a casa.
O problema de abastecimento é antigo. Desde o dia em que nos mudamos para o alto de uma ladeira, vinte anos atrás, era comum se deparar com a caixa d’água vazia e a pia repleta de louça para lavar.
Para a nossa sorte, o pedreiro que veio de Minas Gerais para construir esse sobrado em São Paulo trocou olhares com a minha mãe enquanto erguia as paredes e, desde então, construíram uma relação que já dura duas décadas. Ele, que conhece cada tijolo da casa onde mora, desenvolveu um sistema de bombeamento de água com canos de PVC para fazer manualmente o trabalho que a companhia de água deveria cumprir mecanicamente.
Mesmo pagando pontualmente algumas centenas de reais todos os meses, nos dias mais quentes de cada ano temos que abrir a torneira ligada ao balde de plástico e acionar a barulhenta bomba improvisada para impulsionar cada gotinha até o reservatório. Em uma casa com 6 residentes, mil litros dura pouco.
Com sol intenso e baixa umidade do ar, a capital paulista atingiu média de 36,9°C no dia 12 de novembro. E, como nos velhos tempos, as torneiras secaram. Na manhã seguinte, o problema seguia sem solução. Com os ponteiros do termômetro batendo 39°C, não foi possível lavar o rosto ao acordar, tomar banho antes do trabalho ou menos dar descarga nos banheiros.
O problema se estendeu da segunda-feira para a terça e da terça para quarta, em pleno feriado. Para piorar, após uma onda de desabastecimento de eletricidade, que ocorreu no começo do mês após uma intensa tempestade, a Enel voltou a interromper o serviço. Sem luz, nem a bomba manual poderia ser ligada. A caixa d’água, mais uma vez, ficou vazia.
Tanto uma idosa de 89 anos que precisava de hidratação, quanto o pedreiro que chegava suado da obra, não podiam tomar banho no chuveiro ou lavar o rosto na torneira. Para cozinhar e realizar atividades básicas, recolhemos o pouco de água que chegou em um barril e compramos garrafas de um litro e meio no mercado mais próximo.
A lista de endereços afetados é extensa. No grupo do bairro, moradores das ruas Orestes Credidio, João Fernandes, Manuel da Mata Sá, Estevão Dias Vergara, Francisco Jorge Da Silva e Mateus Mendes Pereira relatam que, assim como em muitos dias quentes, estão mais uma vez sem água.
Mas não é só a zona leste que sofre com a seca. Nas outras bordas da cidade, surgem relatos em redes sociais de moradores de bairros como Vila Sônia, Parelheiros, Jardim Ângela e Capão Redondo que também sofrem com o desabastecimento enquanto os centros de meteorologia alertam sobre os riscos do calor extremo e recomendam a hidratação constante para evitar problemas de saúde.
Diante dessa situação crítica, torna-se evidente que a escassez de água na zona leste de São Paulo é resultado de diversos fatores, incluindo o sucateamento da infraestrutura de abastecimento. A negligência em investimentos e a falta de manutenção ao longo dos anos contribuíram para a deterioração do sistema, deixando as regiões vulneráveis a períodos de seca extrema.
Assim como ocorreu com a Enel, a privatização de serviços essenciais pode desencadear consequências negativas. A preocupação com o lucro muitas vezes prevalece sobre o compromisso com a qualidade e a eficiência do serviço prestado. Exemplos recentes, como os apagões na rede elétrica após a privatização da rede de energia elétrica, evidenciam como a busca por maximização de lucros pode resultar em piora no atendimento e na capacidade de resposta a situações de emergência.
A falta de investimento em infraestrutura, aliada à crescente demanda e às mudanças climáticas, cria um ambiente propício para o colapso dos serviços essenciais, como o abastecimento de água. Urge uma revisão nas políticas de gestão, priorizando a qualidade do serviço e a segurança hídrica em vez de simplesmente visar o retorno financeiro.
É fundamental que as autoridades adotem medidas que assegurem a sustentabilidade e a eficiência no fornecimento de recursos básicos para toda a população, sem deixar de fora quem está nas bordas da cidade. Afinal, o acesso à água é um dos direitos humanos mais básicos e essenciais para a sobrevivência humana.
Em nota, a Sabesp me disse que “o abastecimento na região se normalizou na madrugada desta quinta-feira e que a intermitência ocorreu devido a problemas em um equipamento eletromecânico que abastece a região, que foi sanado após o reparo do mesmo”, mas nem respondeu sobre outros bairros e regiões que sofrem da mesma treta que nós aqui.
Mas, atualização: a região recebeu apenas uma pequena quantidade de água, sem pressão, na manhã de hoje. E o abastecimento foi novamente interrompido. Sem água enquanto escrevo este texto. E aí, Sabesp, cadê nossa água?
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