Sonhos, conexões e possibilidades. Essas são algumas das palavras que podem definir a obra de Jeff Alan, artista pernambucano que, em novembro, estreou com sua exposição Comigo Ninguém Pode – A Pintura de Jeff Alan, na Caixa Cultural do Recife, na capital pernambucana. Sob curadoria de Bruno Albertim, a exposição traz mais de 57 obras ao todo, sendo delas 19 inéditas.
Ao longo dos corredores, o pintor traz o protagonismo negro para a telas, subvertendo o até então espaço subjulgado para o povo negro quando se trata da produção, protagonismo e consumo da arte. Em combinação ao uso das cores característico do artista, Jeff Alan promove, por meio do seu olhar, uma experiência que une ancestralidade, elementos do cotidiano e até mesmo toques de afrofuturismo.
Para além da Comigo Ninguém Pode, Jeff Alan é um homem negro, filho de Lucilene Mendes, e irmão de mais seis pessoas. Desde a infância sendo um morador do bairro do Barro, na Zona Oeste do Recife, o local e as suas vivências têm influências mais que diretas nos seus quadros – eles são, literalmente, o que dão vida ao trabalho de Jeff, já que é lá onde fica seu ateliê, onde observa o dia-a-dia dos moradores e ‘transcreve’ isso para as telas. “Toda minha história nasceu lá e permanece lá. Gosto de destacar isso porque lá é meu lugar sagrado de produção. Muitos desses retratos que estão aqui [na Caixa Cultural] nasceram nas ruas do bairro do Barro”, enfatiza.
A geografia do lugar, aliás, é uma das peças chaves para entender o artista, que ressalta frequentemente suas raízes. Além do campo, Jeff Alan também traz a sua perspectiva a partir do chamado Bar do Beco – que pertenceu ao tio, que faleceu em 2022. “Tem o campo, minha casa, a casa do meu tio e três escolas públicas. É uma área muito pequena, mas que nascem coisas grandiosas”, destaca.
Vivências – Nascido Jefferson Alan Mendes Ferreira da Silva, o artista, como é de comum na vivência de jovens negros e predominantemente periféricos, teve como sonho um dia ser jogador de futebol. Jeff destaca que sua infância foi dividida entre o esporte e a arte. Apaixonado pelo futebol, o primeiro contato veio a partir do Campo do Floresta, onde muito se cultua o chamado futebol de várzea. Hoje, após ter escolhido o caminho das telas e do grafite, Jeff conta que o campo permanece na sua vida, mas sob outra perspectiva, já que sua casa – onde fica seu ateliê – fica próximo do local.
A arte, porém, parecia já estar predestinada desde a infância de Jeff, já que a mãe do artista foi a principal incentivadora do seu trabalho. “Desenhar sempre foi minha grande paixão. Lembro da minha mãe segurando minha mão, desenhando comigo, com a mão esquerda”, detalha, citando que tanto ele quanto Lucilene são canhotos.
“Só agora que eu consigo entender que a mão de mãe é uma coisa sagrada. Minha mãe já sabia que eu era artista. Isso é meu propósito de vida.” A presença de Lucilene é algo frequentemente citado pelo artista, que a classifica como mais uma curadora do seu trabalho. “Tenho uma ligação muito forte com a minha mãe. É minha mãe que consulto quando quero definir algo na minha obra. Talvez a minha mãe seja a pessoa que mais entende do meu trabalho, e ela não tenha noção disso.”
Antes mesmo das pinturas tomarem seu espaço, a arte de Jeff Alan se manifestou da maneira mais pública possível: nas ruas, com grafites e pixação. Jeff, inclusive, relembra um dos pontapés para sua carreira se tornar o que é hoje: um possível coletivo, com outros três amigos, que foi atravessado pelas violências estruturais contra o povo negro. “Três amigos de infância: Aurélio, Rafael e Iran, meus amigos pretos, do meu bairro. A gente saia para pixar, largava da escola e saía. Foi por um curto período de tempo. Era o início de um possível coletivo de pixação no nosso bairro. Desses três amigos, dois morreram e um está vivo e está em situação de vulnerabilidade. Eles poderiam estar aqui. Perdi muitos amigos, que estão vivos no meu trabalho, mas seria muito mais instigante se eles tivessem aqui, fisicamente, participando dessa conversa”, relembra em entrevista, visivelmente emocionado.
As cores de Jeff Alan – Daltônico, Jeff Alan mantém uma relação peculiar com as cores – com sombreamento e tons primários os elementos mais presentes nas suas obras. Hoje, o artista conta que essa condição já não é mais um incômodo, e que até faz parte de ser quem ele é, mas que precisou lidar com isso quando sequer sabia do que se tratava o quadro. Foi aos “vinte e poucos anos” que, ao apresentar um trabalho na faculdade, apontou para um perímetro rosa, que na verdade era vermelho.
Na prática, as cores de Jeff Alan refletem, novamente, vivências do povo preto e traçam um caminho do que ele quer que esteja por vir. O vermelho, que para muitos é associado à cor da paixão e do amor, ganha outro tom quando se trata de peles negras, como explica o artista ao citar a música Falcão, do rapper Djonga. “Olho corpos negros no chão, me sinto olhando o espelho / Que corpos negros nunca mais se manchem de vermelho.” Enquanto isso, o azul primário traz a conexão com o futuro, o admirar o céu e o enxergar de possibilidades – para ele, transmitir aos jovens que é possível ter coragem e sonhar com o futuro.
Com ele, todos podem – Se o consumo da arte e quem está nas telas já são pré-definidos por valores hegemônicos da cultura branca, em Comigo Ninguém Pode, Jeff Alan subverte e reivindica o espaço para o povo preto – que ocupa e estampa as obras. Homens, mulheres e crianças são retratados em cenas do cotidiano. Com olhares atentos e sonhadores, os personagens das telas de Alan são pessoas que já passaram pela trajetória do pintor.
A exposição, por si só, já ocupa um espaço cultural de importância na capital pernambucana, já que fica em um prédio erguido em 1912, localizado no Bairro do Recife. Enquanto isso, o nome, Comigo Ninguém Pode, também serve como um aviso e homenagem ao que veio e ao que está por vir na vida do artista e na subjetividade de pessoas negras. “Comigo ninguém pode também é uma forma de afirmar a força e o poder dos fazeres do povo preto. De me levantar todo dia e dar um aviso: comigo ninguém pode”, explica. A referência à planta, por sua vez, está ligada à memória afetiva do pernambucano – que viu a espécie em casa e em diversas residências do bairro.
Aberta ao público gratuitamente até janeiro de 2024, a mostra estreou no dia 11 de novembro com recorde de público – atraiu mais de 1 mil pessoas para sua abertura. “A arte também nos possibilita abrir canais de discussão. Ou seja, isso não é para ser visto como um elemento de decoração. Isso aqui é um ato político. Sou mais um porta voz desses sonhos pretos.”
Serviço: Exposição “Comigo Ninguém Pode – A Pintura de Jeff Alan” | Até janeiro de 2024 | Caixa Cultural Recife – Av. Alfredo Lisboa, 505, Bairro do Recife – Acesso gratuito | Terça a sábado, das 10h às 20h e domingos e feriados, das 10h às 18h