Na semana em que são comemoradas as lutas do povo negro, no Dia da Consciência Negra (20 de novembro), alguns números divulgados pela pesquisa “Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil”, deixam vários representantes dessas comunidades entristecidos, conforme foram ouvidos pelo Expresso na Perifa.
O levantamento foi desenvolvido pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e a Terra de Direitos, que registra os diversos tipos de violência contra quilombos ocorridas no período de 2018 a 2022. Os dados ressaltam o agravamento das desigualdades e violências historicamente praticadas contra as comunidades quilombolas, sentidas por esses povos há séculos e reveladas já na primeira edição.
Detalhes – No quinquênio analisado foram mapeados 32 assassinatos, com registro de casos em 11 estados e todas as regiões do país – inclusive no Centro-Oeste, que não havia registrado casos na 1ª edição.
Conflitos fundiários e violência de gênero estão entre as principais causas dos assassinatos de quilombolas no Brasil. Ao menos 13 quilombolas foram mortos no contexto de luta e defesa do território.
“Como mulher quilombola e advogada popular, sinto que esses números trazem visibilidade às violências sofridas nos territórios. É intensamente triste saber que em cinco anos temos quase o mesmo número de quilombolas assassinados que o levantado na pesquisa anterior, referente aos assassinatos ocorridos entre 2008 a 2017. Ou seja, temos um aumento da violência nos quilombos nos últimos anos”, lamenta Kathleen Tie, advogada popular da Terra de Direitos e quilombola da comunidade Pedro Cubas de Cima, localizada em Eldorado (SP).
Esse sentimento de insegurança também é compartilhado por Jurandy Wellington Pacífico, presidente do Instituto Mãe Bernadete e coordenador-geral da Asseba (Associação dos Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia).
Jurandy é filho de Maria Bernadete Pacífico, mais conhecida como Mãe Bernadete, que foi uma ialorixá, ativista e líder quilombola, assassinada no dia 17 de agosto deste ano, na casa onde morava no Quilombo Pitanga dos Palmares, na Bahia. Ele também é irmão de Binho do Kilombo, também executado com tiros na mesma região, mas em 2017.
“Fazer parte dessa estatística virou rotina do povo negro no Brasil. Não é questão de vitimizar. É questão de políticas públicas voltadas para nós que não saem do papel, não existem na prática. É nos quilombos que a educação não chega, na periferia a educação não chega. O desenvolvimento não chega nessas comunidades. Então tudo acaba sendo marginalizado”, comenta Jurandy.
Ele ainda reforça: “Minha mãe infelizmente faz parte dessa estatística, mas morreu lutando por aquilo que ela acreditava. Lutava no enfrentamento contra o racismo, no empoderamento da mulher negra. Lutava em busca de políticas afirmativas para os povos tradicionais. Minha mãe acreditava nisso tudo e fazia as coisas certas. E no país às vezes você se torna alvo, como ela foi e meu irmão foi. As políticas públicas, especialmente aos quilombolas, elas têm que sair do papel”.
Comparações – A pesquisa também revela que a violência contra quilombolas se acentuou nos últimos cinco anos. Isto porque a 1ª edição da pesquisa mapeou 38 assassinatos ocorridos no período de dez anos (2008-2017). Em 15 anos, 70 quilombolas foram executados (2008 a 2022).
Quando comparado à 1ª edição, referente aos anos de 2008 a 2017, a média anual de mortes que era de 3,8 passou a ser de 6,4 assassinatos ao ano. O número representa quase o dobro da média anual de assassinatos do levantamento anterior.
Nos 10 anos analisados na 1ª edição, o registro de mais de quatro assassinatos de quilombolas ano foi uma exceção – apenas dois anos ultrapassaram esse número.
Nesta segunda edição, no entanto, 04 assassinatos de quilombolas foram registrados nos anos com menor número de violência no período analisado. Os anos de 2019 a 2021 registraram picos de 08 assassinatos. A pesquisa ainda revela que em, ao menos 15 desses crimes, as pessoas assassinadas eram lideranças reconhecidas pelas comunidades.
“Compreendemos que esta pesquisa – ainda que revela dados alarmantes – é de fundamental importância para visibilizar realidades vividas nos territórios quilombolas e, a partir dos dados, o Estado elaborar políticas públicas efetivas e eficientes para a superação destas realidades”, pontua Kathleen Tie.
Já para Jurandy Pacífico, “enquanto não tiver políticas públicas para acelerar o RTD, Relatório Técnico de Identificação e Delimitação, para titular as terras, vários líderes quilombolas, povos vão ser assassinados. Hoje a titulação das terras para os quilombos é como se fosse agricultura familiar, farta, feliz, sem risco. Hoje a titulação é um colete a prova de bala. Mas, infelizmente, há esse gargalo em titular as terras e vários líderes serão executados”.
Mulheres – E as negras não escaparam da violência que a pesquisa mapeia: a alta ocorrência de feminicídios. Dos 32 assassinatos, em 09 registros as vítimas são mulheres. Em todas as ocorrências foi verificado que o assassinato ocorreu pelo fato de as vítimas serem mulheres, com atual ou ex-companheiros como os atores da violência.
Ainda que remeta à esfera privada das relações, as organizações compreendem que as violências contra as mulheres são reflexo da luta política desempenhada por elas no quilombo na defesa do território e na sobrevivência das comunidades.
Assim como os dados sobre assassinato, a proporcionalidade de mulheres quilombolas assassinadas dobrou no último período, com o registro de nove feminicídios quilombolas em cinco anos (2018- 2022), enquanto oito mulheres quilombolas foram assassinadas no período de 10 anos abarcados no primeiro volume (2008-2017).
Para os representantes ouvidos pelo Expresso na Perifa, houve enfraquecimento das ações promovidas pelos poderes públicos, que resultaram no uso da força contra os povos quilombolas.
“A política de regularização fundiária sofreu forte desmonte. Além da fragilização dos órgãos com atribuição da regularização fundiária, com baixo orçamento e sem reposição de quadros técnicos – como Incra e Fundação Cultural Palmares – houve uma queda intensa do orçamento destinado para titulação quilombola de 2016 a 2022, com especial destaque para a redução registrada durante o governo Bolsonaro. Em 2022, por exemplo, a queda no orçamento foi de mais de 99%, comparado a 2012. Em 2021, não houve nenhum valor destinado para indenização”, comenta Kathleen Tie.
Jurandir Pacífico acredita que “hoje temos todas as leis aí para proteger os quilombos, mas elas não são aplicadas. Um exemplo é o Inema [Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos] aqui na Bahia libera uma licença para construir um aterro sanitário numa APA (Área de Proteção Ambiental)? O mesmo sistema que abraça, é o mesmo que lhe mata. Então as coisas precisam ser discutidas de forma séria. Infelizmente, a corrupção, o conchavo político interfere em tudo. Deveríamos ter mais seriedade nas leis”.
Sugestões – Para a representante da Terra de Direitos, o caminho mais curto para reduzir esses índices e dar um futuro melhor para os quilombolas do Brasil é a retomada de iniciativas que beneficiem os povos quilombolas.
“É fundamental a elaboração, pela União e Estados, de planos nacionais e estaduais de titulação dos territórios quilombolas, com metas concretas anuais, alocação suficiente de recursos e estrutura administrativa adequada, para que todos os territórios quilombolas sejam titulados em prazo razoável. Os planos devem estar previstos nos planos plurianuais, devem ter execução fiscalizada pelos órgãos competentes; orçamento suficiente para concluir as desapropriações cujas áreas já foram decretadas de interesse social pela Presidência da República”, ressalta Kathleen Tie.
A advogada ainda completa: “Outra medida a ser implementada é a revisão das normas administrativas que regem os procedimentos quilombolas no Incra e Fundação Cultural Palmares, com garantia de efetiva participação do movimento quilombola nos processos decisórios. Já no que se refere à proteção de defensores e defensoras quilombolas, é necessária a revisão da Política de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos (PPDDH)”.
Kathleen ainda acredita que “nesta revisão deve ser assegurada a participação social da sociedade civil para garantir que uma nova configuração do Programa contemple as especificidades de pessoas e grupos ameaçados quilombolas. E, considerando as violências já ocorridas, o estado brasileiro deve garantir a adequada investigação e responsabilização dos autores, em tempo razoável”.
Jurandy Pacífico evidencia que “um grande problema que temos nos quilombos do Brasil é que ficam elegendo esse povo branco aí, amassando barro pra faraó, e eu vou continuar afirmando: precisamos ocupar espaços de poder. Enquanto o povo negro não ocupar os espaços de poder será massacrado, de um jeito ou de outro. Temos que furar essa bolha aí. Somos a maioria e a minoria nos espaços de poder? Essa conta não bate”.
Ele finaliza convocando a população quilombola a exercer um dos seus principais direitos: o voto.
“É preciso ter esse sentimento e esse Norte na vida do povo para seguir em frente. Precisamos ter representantes legais. Nada contra quem é branco não, só que o sistema em si já é podre. A burguesia fede, como já dizia Cazuza. Nós negros, nós quilombolas, nós do movimento negro, nós dos povos tradicionais, precisamos ocupar as Câmaras de Vereadores, Senado, Câmara dos Deputados, se não, não acredito muito que a coisa certa será feita se nós não estivermos lá.”