Lilia Guerra é muita coisa: mãe, esposa, filha. Em sua família de matriarcas negras, aprendeu o trabalho do cuidado desde cedo. Transformou-o em profissão: tornou-se auxiliar de enfermagem e, hoje, atua no Sistema Único de Saúde (SUS), em São Paulo. “Falava para minha mãe que queria ser professora, mas a vida vai nos conduzindo por outros caminhos”, aponta.
Moradora da Cidade Tiradentes, bairro na zona leste de São Paulo, Lilia vive na mesma casa há pelo menos 24 anos. E conta que cuidar do outro e da comunidade partiu de uma necessidade e sempre foi algo muito natural para ela.
“Nós tínhamos que nos organizar para uma família cuidar da outra, se ajudar. Eu cuidei de muitas crianças para as mães trabalharem. Junto de outras meninas e meninos da minha idade, íamos buscar as crianças menores na escola e cuidávamos até os pais chegarem”, conta.
Lilia também é escritora. Boa parte de suas palavras é dedicada à sua avó, Dona Júlia, de quem cuidou na velhice. “Muito do que eu escrevo são conversas que eu gostaria de ter com pessoas e não consegui. A principal delas é a minha avó, nós passávamos muito tempo sozinhas, conversávamos muito”, revela.
A escritora conta que, quando se mudaram para a Cidade Tiradentes, para um conjunto habitacional, sua avó se martirizava, acreditando não ter tido competência para pagar aluguel em um lugar melhor. “Hoje em dia eu gostaria de dizer que não foi culpa dela”.
A escrita – Aos 6 anos, Lilia teve seu primeiro contato com a literatura. “A biblioteca era a minha casa e os livros eram meus brinquedos”, ri. Ainda hoje, lembra-se da primeira história que colocou no papel. Recebeu um exercício na escola com a proposta de escrever um texto sobre uma figura: um garoto caído numa poça de lama. Ela ficou maravilhada com a proposta.
Já adulta, o que baseia sua escrita são suas vivências, memórias e as pessoas à sua volta. As casas em que acompanhava Dona Júlia, que trabalhava como doméstica, também são cenários de seus contos. Assim como a cidade, sempre distante e apressada, e as periferias, com mais vida e histórias do que se pode contar.
Seu primeiro livro, Amor Avenida, foi publicado em 2014. O romance acompanha a trajetória de Viviana que, sem dinheiro e abandonada pelo marido, entrega a filha mais velha para adoção. “Meu amor por você é semelhante a esta avenida: ainda que eu me vá, ele permanecerá”, diz um trecho da obra.
“Na época que eu comecei a escrever, passava muito tempo na condução. E lá eu escrevia, porque achava que era um tempo muito precioso para perder”, conta Lilia. “O transporte público é muito inspirador, principalmente para mim que moro numa periferia e trabalho na periferia. Eu reparava e entendia as expressões das pessoas – muitas vezes de cansaço –, os gestos, as decepções quando o ônibus passa batido no ponto e você tá ali em pé, às vezes por tantas horas seguidas.”
As mulheres das periferias na cena – As dores, as delícias e as graças concedidas aos habitantes de algum lugar bem distante do centro de qualquer cidade movem a trama de Perifobia. Publicado em 2018, o livro de contos foi finalista do Prêmio Rio de Literatura 2019 e cruza, a cada capítulo, as histórias dos moradores da mesma quebrada.
Rua do Larguinho e outros descaminhos foi publicado em 2021. Nele, mulheres negras comuns – trabalhadoras domésticas, babás, diaristas, manicures – estão no centro das narrativas. Nesse território, elas transitam, moram, têm a liberdade de falar a própria linguagem, e são eternizadas.
“Eu costumo falar essencialmente sobre mulheres. Isso é espontâneo. Até porque, eu não tive convivência com o meu pai e não tenho irmãos, só uma irmã”, explica. “Sempre observei demais o que acontecia com as mulheres em casa. Mesmo criança, lembro de observar a minha avó ficando doente de tanto trabalhar. E foi a mesma coisa com a minha mãe. Quando nos mudamos para Cidade Tiradentes, ela saía de casa às quatro da manhã para chegar na hora do trabalho, lá na Zona Sul.”
Em 2022, Lilia lançou mais dois livros: Crônicas para colorir a cidade e Novelas que escrevi para o rádio Vol. 1, 2 e 3. Seu livro mais recente, O céu para os bastardos, foi lançado em setembro deste ano.
Nele, uma das protagonistas da “Rua do Larguinho” volta como personagem central: Sá Narinha. A trabalhadora doméstica é mais uma moradora da periferia e, acompanhando sua trajetória, é possível observar a denúncia de graves problemas sociais que assolam esses territórios.
Em suas redes sociais, Lilia recebe muitas mensagens de mulheres que se parecem com suas personagens, com ela e suas matriarcas. “Nos reconhecemos nas experiências quando compartilhamos. Levamos aquele susto quando percebemos que certas situações não aconteceram só conosco”, constata.
Em 2023, com o livro Cavaco do Ofício, ainda não publicado, a escritora foi uma das 61 selecionadas pelo Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres 2023, promovido pelo Ministério da Cultura (MinC).
“Na próxima edição do prêmio, quero muito ver a maioria de mulheres subalternizadas, silenciadas, mulheres pretas, em situação de vulnerabilidade. Todas escrevendo, contando suas histórias e expondo a realidade. Se fizermos dessa maneira, ninguém vai poder falar que não sabia, que nunca tinha ouvido falar sobre”, pontua.
Uma dica para aquelas que também querem contar suas histórias ao mundo é: façam anotações. E seu recado final é: “não é fácil, mas é possível. Não é romântico, não é algo mágico, mas é possível”, conclui.