Condenado a nove anos e sete meses de prisão e à perda do cargo por obstrução da Justiça, o delegado de polícia do Rio de Janeiro Maurício Demétrio Afonso Alves ironizou a morte da vereadora da capital fluminense Marielle Franco um dia após o assassinato a tiros da parlamentar em 14 de março de 2018. Conversas obtidas pelos investigadores em um dos 12 celulares apreendidos no apartamento do delegado, em junho de 2021, mostram “manifestações inaceitáveis”, como descreve o juiz Bruno Rulière, da 1ª Vara Especializada em Organização Criminosa da Comarca da Capital, na condenação de Demétrio.
“Gente. O enterro da vereadora será no Caju. Mas a comemoração alguém sabe onde será?”, escreveu Demétrio em uma mensagem via WhatsApp no dia 15 de março, menos de 24 horas após a morte de Marielle.
Rulière pontua que o teor das mensagens são “inaceitáveis”: “O acusado ainda tem manifestações inaceitáveis, que ganham maior reprovabilidade tratando-se de um delegado de polícia”.
As mensagens foram enviadas para o delegado e ex-secretário da Polícia Civil Allan Turnowski, preso em setembro de 2022, na Operação Águia na Cabeça, do Ministério Público do Rio. O delegado foi investigado por organização criminosa e envolvimento com o jogo do bicho. Ao receber as mensagens sobre Marielle, Turnowski respondeu com três emojis de espanto.
Delegado de polícia há duas décadas no Rio de Janeiro, Demétrio está preso desde 2021, acusado de cobrar propina no exercício do cargo de titular na Delegacia de Repressão aos Crimes Contra a Propriedade Imaterial (DRCPIM) e montar falsos dossiês para a incriminação de autoridades e, assim, impedir investigações.
Antes de assumir a DRCPIM, o policial passou pelas delegacias do Meio Ambiente (DPMA), do Consumidor (Decon) e de Roubos e Furtos de Automóveis (DRFA).
O juízo da 1ª Vara Criminal Especializada no Combate ao Crime Organizado apontou que Maurício Demétrio utilizou a sua função de delegado de polícia e toda a estrutura da instituição policial para “criar um complexo plano, que contou com a instauração de procedimentos policiais e administrativos disciplinares fraudulentos”.
“As consequências do crime devem ser consideradas quando a repercussão do fato fugir da normalidade e transcender o resultado típico. O acusado implementou uma insaciável e perversa exposição pública de seus alvos, em especial delegados de polícia, por meio de intensa divulgação na mídia (por ele fomentada) de narrativas marcadas por falsas acusações de crimes A desconstrução pública da imagem de pessoas, em especial pelo uso de grandes meios de comunicação, traduz em consequência de superlativa danosidade que, certamente, é impossível de ser restabelecido ao status anterior ao ilícito”, diz a decisão.
A defesa de Maurício Demétrio ainda não foi localizada.
‘Vida de mensaleiro’
O magistrado destaca ainda na sentença o padrão de luxo vivido pelo delegado, incompatível com os seus ganhos no exercício do cargo público.
“Foram colhidas provas de que o delegado de polícia externa um padrão de riqueza altíssimo, inclusive muito superior ao que a remuneração (exclusiva) da sua atividade lícita lhe permitiria. São inúmeros os registros de gastos altíssimos com o aluguel constante em mansões em Angra, utilização rotineira de lanchas e jet-ski, viagens internacionais constantes (em classe executiva), proprietário de diversos carros blindados de altíssimo padrão, assim como residência fixada em imóvel luxo. Além disso, o acusado possuía altíssimo valor (centenas de milhares de reais) em espécie em sua casa, objeto de apreensão. Vida abastada que o próprio acusado resume como sendo uma ‘vida de mensaleiro’.”
Rulière cita áudios obtidos pela investigação, em que Demétrio afirma a um interlocutor que ainda não tinha tido tempo de rever um documento recebido porque estava na “vida de mensaleiro”.
“Cara, eu recebi sim! Só que eu tava andando de jet-ski na minha vida de ‘mensaleiro’ e não tive tempo de ler”, consta em trecho de transcrição de escuta do acusado.
Mensagens de teor racista
As mensagens obtidas pelos investigadores ainda revelam textos enviados por Demétrio com teor racista. O delegado se refere à delegada Adriana Belém, que foi presa em maio de 2022 durante as diligências da Operação Calígula, que apurava uma suposta rede ilegal de casas de jogos de azar liderada pelo contraventor Rogério de Andrade, com o filho Gustavo de Andrade. O grupo contava com a participação de “dezenas” de criminosos, entre eles Ronnie Lessa, acusado pelo assassinato a tiros da vereadora Marielle e do motorista Anderson Gomes.
Os promotores acharam R$ 1,8 milhão em dinheiro vivo na casa da delegada Adriana Belém. Após a apreensão, ela foi presa preventivamente.
Nas mensagens obtidas com Demétrio, o delegado menciona a colega de forma preconceituosa. O juiz destaca: “refere-se de forma racista a uma delegada chamando-a de ‘macaca escrota’ e ‘crioula'”.
Sobre o tratamento racista contra Belém, o ex-secretário da Polícia Civil do Rio de Janeiro, receptor das mensagens, posta um ponto de interrogação e não comenta a declaração.
‘R$ 780 mil desde que foi preso’
Na decisão, Rulière determinou o afastamento imediato de Demétrio de suas funções como delegado. Com a decisão, ficam suspensos os rendimentos do policial. De acordo com o advogado Fernando Fernandes, a sentença tem efeito imediato, mas o delegado pode recorrer até o trânsito em julgado.
O delegado mantém um salário líquido de R$ 14,378.17 mensais, de acordo com dados do Portal da Transparência do Rio de Janeiro. Desde que foi preso, o delegado recebeu R$ 780.745,25 dos cofres públicos.