Conhecida como “Quelé”, Clementina de Jesus da Silva se tornou um dos nomes da música popular brasileira que representa as heranças africanas e que revolucionou o samba. Nascida em 1901 em Valença, na região cafeeira do estado do Rio de Janeiro, sua história retrata a realidade de grande parcela da população brasileira. Tendo trabalhado grande parte da vida como empregada doméstica; ela, que foi neta de escravizados, construiu uma carreira na música quando já completava seus 63 anos.
Clementina foi descoberta pelo produtor musical Hermínio Bello de Carvalho, que identificou valor em seus cantos resgatados pela oralidade de seus antepassados. Foi em 1965, que ela foi consagrada como uma voz potente e marcante em sua apresentação no espetáculo Rosa de Ouro.
Cantando o partido-alto, estilo de samba caracterizado pelo improviso, Clementina já abordava temas como a luta contra a discriminação racial, o machismo e valorização da cultura negra. A sambista fez história e ficou conhecida por suas cantigas populares. O álbum “O canto dos escravos”, produzido ao lado de Geraldo Filme e Tia Doca, é um dos trabalhos mais renomados da artista.
Uma vida construída na musicalidade – Ao resgatar sua ancestralidade e os cantos difundidos pela oralidade, Clementina de Jesus construiu uma carreira com novos ritmos que exprimiam as suas raízes. Ela mesma contava em entrevistas que a música sempre esteve presente em sua trajetória, mesmo quando atuava como doméstica.
“Clementina trabalhou anos com a Dona Glorinha, que reclamava da forma que ela cantava e quando ela tinha que sair para fazer shows. Porque ela começou a fazer shows, mas ainda não era famosa. Não ganhava dinheiro, então ainda trabalhava como empregada doméstica”, compartilhou Raquel Munhoz, uma das autoras do livro “Quelé, a voz da cor”.
No livro escrito por Felipe Castro, Janaína Marquesini, Luana Costa e Raquel Munhoz, a história de Clementina ganha detalhes que não eram conhecidos. A partir da apuração dos autores, foi possível descobrir até o envolvimento de Clementina com escolas de samba antes mesmo de construir uma carreira sólida na música.
“Ela ficou famosa já idosa, aos 63 anos. Ninguém tinha nenhuma informação prévia sobre ela. Mas, a partir do acervo de áudios da Funarte e do Museu da Imagem e do som do Rio de Janeiro, a gente conseguiu descobrir o envolvimento dela com a Portela, com a Mangueira, com Heitor dos Prazeres, que foi um grande um grande músico e pintor dos anos 30 e 40”, revelou Felipe Castro, um dos autores da biografia de Clementina.
Segundo ele, a sambista já tinha relação com grandes personagens da música e da arte no Rio de Janeiro antes de ela se tornar uma artista gravando discos.
Relevância e apagamento – Além de retratar sua história de vida pela música, Quelé marca a importância de uma mulher negra conquistar o espaço que ela alcançou com sua carreira na época.
“Ela coloca o samba em um lugar de sucesso. Vai retomando o lugar que a Bossa Nova estava alcançando na época, que nada mais é que um samba misturado com Jazz, só que elitizado. Então ela traz esse samba mais ‘reafricanizado’, como diriam alguns historiadores, e que traz outras expressões musicais”, contextualiza Castro.
Raquel Munhoz pontua também que Clementina traz o protagonismo feminino em uma época dominada majoritariamente por homens. “Estavam ascendendo Martinho da Vila, Jorge Ben Jor, Tim Maia, que por mais que fossem negros, eram homens”, menciona ela.
Apesar da relevância da sambista no cenário musical, é possível identificar certo “apagamento” de Clementina no que diz respeito às raízes africanas na música brasileira. Ela participou de inúmeros eventos importantes: representou o Brasil no Festival de Artes Negras em Dakar, no Senegal, e também no Festival de Cannes, na França. Mas, com o tempo, seu protagonismo na música foi sendo deixado de lado.
“A partir da metade dos anos 70, ela vai sendo ostracizada, esquecida, descartada pela indústria”, explica Castro. Segundo ele, Clementina foi conseguindo cada vez menos lugares para se apresentar, tendo que recorrer a espaços mais nichados do resgate do “sambão”, conhecido como samba de raiz.
Castro também explica que a ascensão dela na música não durou muito tempo e já nos anos 80 começou a ter problemas de saúde, falecendo em 1987.
“A indústria utilizou a figura dessa mulher negra que era neta de escravizados até onde foi conveniente. Depois a descartaram como qualquer coisa, né?”, opina Felipe Castro.
Em contrapartida, Luana Costa, também autora do livro “Quelé, a voz da cor”, enfatiza a importância de valorizar o papel de Clementina na história da música: “A gente tem muitas Clementinas no nosso país. Então, em datas comemorativas como o aniversário dela, falar da Quelé serve não só como preservação da memória da própria Clementina, mas também de todas as Clementinas do Brasil”.
A primeira biografia – Com uma apuração quase do zero e com poucas referências anteriores, “Quelé, a voz da cor” encontrou obstáculos para sair da imaginação e virar uma investigação apurada sobre a vida de Clementina de Jesus. O resultado foi a obra “Quelé, a voz da cor: Biografia de Clementina de Jesus: Biografia de Clementina de Jesus (Ed. Civilização Brasileira)”.
Iniciado como um trabalho final da faculdade de jornalismo, Janaína Marquesini, Luana Costa e Raquel Munhoz ouviram até mesmo que a história de Clementina não tinha relevância jornalística. Mas persistiram em resgatar a relevância artística de Quelé para a cultura brasileira.
“Foi um trabalho árduo de pesquisa. Víamos alguma fala ou declaração e procurávamos o jornal daquele ano para ver se encontrávamos a informação, se era verdadeira, se tinha feito aquele show mencionado, porque havia pouquíssimo conteúdo sobre ela”, explicou Luana Costa.
Após a graduação, com mais seis anos de investigação, o livro ficou pronto e o grupo contatou uma editora para realizar a publicação. E, mesmo depois de 23 eventos de lançamento, os autores reiteram a necessidade de reverenciar Clementina de Jesus.
“Celebrar a Clementina é você contar para as novas gerações que existia uma cantora que tinha essa potência ancestral tão importante. Que ela trazia o resgate da memória, que era uma cantora com uma voz grave, rascante, uma voz muito diferente. É celebrar uma figura muito única, muito singular na expressão cultural popular brasileira”, finaliza Felipe Castro.