“A vida sem a música seria um erro, assim como Deus que não sabe dançar seria um erro. Não acredito num Deus que não sabe dançar, não acredito no ancestral que não saiba tocar, não acredito num terreiro em que as pessoas não aprendam a bater palma. Não acredito no corpo que não se mexe para o preto de terreiro, corpo que não mexe está morto, não se reconecta com o passado.”
Apaixonado por música, David Dias é babalorixá de umbanda, sacerdote, radialista e mestre em ciência da religião. E sua interpretação sobre a música reflete parte da percepção sobre a própria umbanda e a religiosidade no Brasil. “A contribuição da música para a minha vida é a mesma contribuição para umbanda e para o Brasil, um som que bebe das raízes africanas”, explica ele.
Incentivado pela mãe a gostar de música e a tocar piano, David defende como os atravessamentos sonoros estão presentes quando se fala de religiosidade: “O terreiro está na música, e vice-versa. Não dá para saber se a gente reza cantando ou se a gente canta rezando. O que dá para saber é que a gente só se encontra com o passado quando a música toca”.
Pai de santo do Terreiro Aruanda, o babalorixá desenvolveu inúmeros trabalhos dentro da umbanda e, ao longo do tempo, foi solidificando seu trabalho e atuação em diferentes frentes. Ele, formado em Rádio e TV e que trabalhou como DJ, viu sua vida se consolidar dentro da sua religiosidade.
Desenvolvendo conteúdos informativos, como o Aruanda Podcast, movimentos de resistência dentro das religiões de origem africana, como é o caso do Terreiro Resiste, e estudando as mudanças sociais dentro da umbanda ao longo do tempo, David tem se consolidado como figura que preserva a cultura negra dentro da umbanda.
A partir do seu mestrado em ciência e religião, o sacerdote concluiu um produto que, segundo ele, pretende levar à reflexão e à propagação de um manual de letramento racial por meio da umbanda. O “Sincretismo na Umbanda”, livro lançado na última sexta-feira (2), é resultado de um estudo sobre o embranquecimento da religião ao longo dos anos.
Por que combater o sincretismo? – Ao longo dos 14 anos já inserido na religião, David percebeu a dificuldade de encontrar pessoas negras dentro dos terreiros e passou a procurar respostas por meio de sua pesquisa e pela literatura. “Estudando a umbanda, consigo entender que, cronologicamente, a religião perde seus adeptos negros, há uma substituição. E depois eu vou entender o processo de colonização do Brasil”, explica.
Com a inserção de santos brancos, misturas deste sincretismo que deixa a umbanda mais aceita e até mesmo uma aproximação maior com religiões que não têm origem africana, a umbanda foi se modificando ao longo das mudanças também sociais da sociedade. E, segundo David, após se debruçar em sua pesquisa, a resposta ficou nítida:
“O termo ‘sincretismo na umbanda’ poderia muito bem se chamar racismo dentro e fora da umbanda, né? Então, investigar o sincretismo é, principalmente, investigar o processo racial de desenvolvimento da religião”.
Apesar do sincretismo ter sido incorporado à religião devido ao próprio racismo para que ela pudesse ser aceita, o pai de santo enfatiza o quanto é necessário se desvencilhar dessa lógica que afastou a umbanda das suas próprias origens.
Segundo David, reforçar o sincretismo ainda hoje é uma forma de violência. “O tempo é agora. E a discussão não é mais o fator histórico de que o sincretismo valeu em uma época. Antigamente, podia fumar em avião. Antigamente, podia fumar em restaurantes. Qual é a discussão do tempo de agora? Aquilo que fica no passado não é tradição, é ostracismo. Tradição é aquilo que junto ao tempo se faz renovar para se manter viva.”
O babalorixá reforça também que, quando se trata de culturas africanas, o apagamento e apropriação “cola” de uma forma muito fácil. “Você já foi em alguma loja e pediram uma imagem de um buda, mas um buda preto? Por que querem reivindicar um preto velho branco, um pai velho? Parece que na umbanda isso passa, mas não, meus ancestrais estão aqui nesse chão.”
Além disso, David aborda o fato de ser um dos únicos babalorixás negros dentro da umbanda, ressaltando a necessidade de preservar a cultura e o pertencimento negro dentro da religião, propondo uma retomada negra. Perspectiva que pode ser vista não só no âmbito da religiosidade.
“A umbanda é uma cultura afro-brasileira de valorização e exaltação dos ancestrais socialmente marginalizados. Essa é a ligação que linka o povo de terreiro e as manifestações sociais. Ou seja, não dá para pensar umbanda sem olhar da porta para fora. Não dá para ler umbanda se não ler o Brasil.”
A marca Aruanda – Ao contar de sua chegada nos terreiros de umbanda, David releva o seu despertar não apenas no que diz respeito à religião, mas também sobre uma atuação integrada com o profissional.
Há 14 anos, começou a frequentar os terreiros de umbanda e, aos poucos, se viu mais e mais inserido no meio. Com formações, ele foi dominando cada vez mais a religião e, quando se deu conta, já estava atendendo pessoas em sua própria casa. Foi aí que iniciou o Terreiro Pai João de Angola.
Aos poucos, o radialista que atuava como DJ, passou a ver sua rotina cada vez mais tomada pela religiosidade. “Não sei se é possível entender, na vida de um babalorixá, o que é profissional, o que é pessoal. Porque aquele que se torna um babalorixá, no fundo, é isso desde que nasce. O indivíduo que é pai de santo, nasceu pai de santo”.
Conforme seu letramento racial aumentava, David foi compreendendo a necessidade de retomar a cultura negra ancestral. “Há uma carência intelectual literária, musical, no sentido gastronômico. E o Aruanda Estúdios vai ser esse grande hub, que vai desenvolver outras facetas da cultura negra na Umbanda. Aí nasce o Aruanda EAD, nasce o Aruanda Podcast que foi um podcast que, com músicas, eu trouxe a cultura da Umbanda, cultura musical e os explanei a cultura de terreiro entre as pessoas”.
O pai de santo conta que, a partir daí, o Terreiro Pai João de Angola vira o Terreiro Aruanda. “Eu tive a sorte de chegar numa religião que me tornasse uma pessoa mais negra, mais africana, mais brasileiro. O que me torna isso quem eu sou é a umbanda”, revelou ele.
Editora Encruzilhadas – Com o lançamento do novo livro, o babalorixá inicia também um novo projeto para o qual deseja vila longa. A Editora Encruzilhadas se consolida como o meio pelo qual ele pretende continuar transmitindo os saberes da população negra. “O objetivo da Editora é devolver a ancestralidade negra para o povo de terreiro e para Umbanda. Quero sonhar com essas pessoas falando de terreiro dentro da Editora Encruzilhadas”.
“Sincretismo na Umbanda” é o primeiro título publicado pelo novo projeto, mas é possível esperar muitas novidades pelo novo selo. David sonha alto e manifestou o desejo de ter artistas como Emicida e até mesmo Mano Brown falando sobre religião por meio da editora. “Se eu quero devolver a ancestralidade para o povo de terreiro, eu tenho que sonhar com isso”, completa.
Terreiro Resiste – Outra vertente do trabalho de David Dias é o movimento Terreiro Resiste, que busca a valorização, resguardo e manutenção da cultura de terreiro através do direito. A iniciativa angaria fundos para manter os 30 advogados que atuam na garantia dos direitos, entrando com ações, apurando dados e atuando com a subnotificação dos terreiros vítimas de violência.
“A gente tem todas as ferramentas para fazer com que o Terreiro Resiste seja um lugar que forneça dados reais para jornalista, para a grande mídia, para as redes sociais e para o próprio estado”, defende o pai de santo.
Protagonismo negro na umbanda – Ser um dos poucos babalorixás negros na umbanda faz com que David Dias represente o combate do sincretismo e do embranquecimento dos terreiros perpassando todas as frentes de atuação do Terreiro Aruanda. Mas ele reitera o desejo de não ser o único:
“Ser hoje um dos babalorixás negros que falam sobre raça dentro da Umbanda é um marcador e é um diferencial que não deveria ser. Mas quais são os outros babalorixás e pais de santo negros que lançaram livros dentro do próprio terreiro? As pessoas não conseguem me dar três nomes. Ser esse porta-voz da negritude da umbanda é importante, mas é um retrato do colonialismo.”