Mulher, negra, nordestina, escritora. Essas são algumas das palavras que Luciany Aparecida precisou reivindicar e reconhecer para si ao longo da vida. Autora do livro Mata Doce (Companhia das Letras), lançado em outubro de 2023, ela usa a sua obra para conectar sua visão de mundo à de outras pessoas – principalmente outras mulheres.
Nascida em 1982 no Vale do Rio Jiquiriçá, Bahia, e atualmente mora em Salvador. Luciany também é doutora em letras com pesquisas na área de teoria e crítica literária.
O romance – Mata Doce é descrito como um romance épico e a primeira obra assinada por Luciany, que explica sua decisão em entrevista. Acontece que, antes dessa ficção, Aparecida já foi responsável por outras obras – envolvendo poesia e até mesmo teatro – onde, durante esse tempo, assinou como Rute Docaso, reivindicando e homenageando o nome da avó, resgatando sua ancestralidade. “Os livros que eu assinei com esse nome eu queria dialogar com a história do Brasil, em obras que contam sobre situações de violência”, detalha.
No livro, a história acompanha a personagem Maria Teresa, que se entrelaça com os personagens da sua região rural, ao mesmo tempo que é acometida por uma tragédia violenta. Ao longo da trama, o papel dessa e de outras mulheres são alvo de destaque, em algo que Luciany destaca como o poder de sensibilizar o leitor, “para ver o mundo a partir de lugares mais complexos”.
Neste contexto, Maria Teresa exemplifica bem o poder de contar uma narrativa a partir da sua própria vivência. Em um cenário atual, onde homens e pessoas brancas descreveram por tantos anos como é aquela figura nordestina e feminina, não seria esse o momento ideal para saber, de fato, como esse ‘personagem’ se enxerga e se coloca no mundo? Em Mata Doce, a protagonista descreve a sua própria vida e os feitos que a levaram até aquele momento.
A premissa de Maria Teresa dialoga diretamente com a sua ‘criadora’, ou melhor, autora, quando se trata de reivindicar as palavras para si. Na conversa com a reportagem, Luciany conta como foi o processo para não só se reconhecer, mas expor ao mundo suas habilidades na escrita.
O momento, inclusive, aconteceu em torno de outras mulheres que, apesar de estarem em um cenário de detenção, lhe ofereceram ali a liberdade para esse reconhecimento dela mesma. “Demorei muito para conseguir dizer às pessoas que eu escrevia porque eu não me via no lugar de escrita. Não tinha referências, quando se fala de 20 anos atrás”, descreve.
Ela cita um episódio ao lado da professora Denise Carrascosa, onde as duas atuavam em prisões de Salvador, na Bahia. “Foi no presídio, a primeira vez que eu consegui dizer sou escritora. A partir daí, comecei a dizer que escrevia. Eu entendi, junto com Denise e aquelas mulheres, que a escrita também foi um lugar de opressão. Entendi que tanto a escrita era um lugar de poder na sociedade, quanto que era um lugar de liberdade”.
Luciany Aparecida é um dos nomes da literatura contemporânea brasileira que toma para si o lugar de contar histórias sobre a suas vivências e os seus atravessamentos. Como antes lia e se inspirava em autores renomados, como Jorge Amado, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos sobre as incansáveis narrativas sobre a mulher nordestina e mulher baiana, agora é a vez dela surgir com uma nova narrativa. “A primeira vez que li Guimarães Rosa, entendi que ele estava falando de mim, da minha mãe e da minha avó, mas não era na perspectiva de visão minha e da minha família. Era como ele nos via, como se ele tivesse uma câmera na mão e nos recortasse da maneira que ele quisesse. Queria escrever o romance em que a câmera na mão fosse a minha”, explica.
Para a autora, Mata Doce pode ser definida de várias maneiras já que cada leitora não só adentra no universo de Luciany, mas se relaciona com ele e se coloca no mundo a partir disso. “Mata Doce é falar de si e escrever sua própria vida. Acho que isso é sobre essa liberdade de narrar. É uma história sobre a liberdade do poder falar de si e do mundo”, finaliza.