“O rap mudou a minha vida, fez eu enxergar o que sofri há anos”, diz o rapper paraense Pelé do Manifesto, em entrevista ao Expresso na Perifa
Reportagem de Cássio Miranda, Coletivo Periferia em Foco, em Belém
O rapper Allan Roosevelt, o Pelé do Manifesto, é um ícone do rap paraense. Ele se destacou no cenário nacional criando letras que abordam os dilemas sociais que jovens pretos enfrentam na periferia de Belém, estado do Pará. Nascido na Cremação, Pelé viu sua vida mudar com a canção Sou Neguinho e agora é uma referência na música de protesto, por potencializar o empoderamento e defender os direitos da população historicamente marginalizada, em especial a negritude.
Em 2020, ao lado do amigo MC Everton, Pelé participou de um festival em que dividiu o palco com nomes consagrados do hip-hop e da MPB, a exemplo de Zélia Duncan. No mesmo ano, lançou o álbum mais recente, Gueto Flow, Preto Show. Sua trajetória de resistência e conquistas é compartilhada em palestras para alunos da rede pública de ensino.
Cássio Miranda, Expresso na Perifa – Quem é Pelé do Manifesto e como nasceu esse nome artístico?
Pelé do Manifesto – Sou um jovem preto periférico que resolveu uns anos atrás montar um grupo de amigos para compor poesias, retratando sofrimentos que passei por não saber o que era, de fato. Na infância, sempre à frente da minha idade, gostei da música de protesto e quando conheci o rap isso transformou quem eu sou, fez eu enxergar o meu papel na sociedade. Hoje, minha arte é meu sustento e da minha família. Quero representar milhares de vozes da periferia do Brasil.
O que levou você aos palcos e quem é seu maior incentivador da cultura rap?
Eu sempre quis ser poeta, desde criança eu já gostava de ler e escrever poesias. Aos 9 anos, ouço Legião Urbana e fico apaixonado pela música de protesto, já aos treze anos o meu pai me dá um DVD do Gabriel o Pensador, me despertando o interesse pelo rap. Com isso, passei a refletir melhor sobre o que sofria por conta do racismo ouvindo esse cantor entre outros, como Racionais. Foi aí que observei que podia expressar minha opinião por meio da música de contestação. Minha maior referência no rap é o MC Marechal. Tento imitar tudo que ele faz, pois enquanto muitos artistas queriam só cantar nos palcos, ele estava indo em escolas falar sobre as questões sociais. Ele é meu norte de vida, quero seguir os mesmos passos dele.
O que o rap significou na sua vida e na carreira profissional?
O rap transformou a minha vida em todos os sentidos, principalmente economicamente. Tive uma outra visão do mundo. Através do rap, entendi que sofri racismo. Também fez eu me amar mais. Aprendi a aceitar o meu cabelo, meus traços, a me empoderar. O rap me dá estabilidade emocional, psicológica; me permitiu passar numa universidade pública. Enfim, fez eu ser uma influência e uma representatividade.
Suas músicas falam sobre racismo, preconceito e a vida difícil da periferia de Belém. Qual a importância disso?
O rap traz uma reflexão que outros ritmos não trabalham. Hoje o rap fala de amor, mas a característica desse estilo, principalmente aqui no Brasil, é ser porta-voz dos menos favorecidos. Os jovens pretos que cantam rap não dominam os meios de comunicação, assim o rap abriu esse espaço para ser um espelho da molecada periférica, porque geralmente o nosso semelhante só aparece no noticiário sendo preso, morrendo, e o rap faz essas contestações que outros estilos musicais não fazem.
Quais as conexões você fez para ser tornar uma referência no rap paraense?
Em 2015, fiz uma conexão com MC Xamã, depois que ele ouviu meu som e compartilhou a minha música. Viajei a São Paulo para fazer a abertura do show dele, após isso o cenário do rap nacional acabou me enxergando. Essa conexão me oportunizou conhecer outros rappers que eu já era fã, como o próprio MC Marechal, Rincon Sapiência e Racionais, entre outros.
Em 2021 você conquistou uma vaga na universidade Federal do Pará (UFPA), o que isso representa na luta contra a discriminação racial?
A aprovação no vestibular foi meu maior rap de protesto, porque estamos levando a intelectualidade periférica e preta para dentro da universidade para quebrar certos paradigmas. É preciso dentro da academia falar mais sobre a literatura marginal, abordar quem é Sérgio Vaz, Ferréz, e ocupar um espaço que também é nosso. Cada vez que jovens pretos ocupam esses lugares, aprendemos o valor do nosso papel na sociedade para lutar contra o preconceito e o racismo.
Casos de racismo e preconceito ao preto ainda são comuns na sociedade. Por que ainda não vencemos isso?
O racismo é uma forma de controle e ainda no Brasil ele é forte, porque uma determinada população (minoria) precisa controlar a grande maioria (menos favorecidos), que, muitas vezes, ganham menos e não têm acesso ao ensino superior. Sem contar que nos criminalizam, abalam emocionalmente por conta de uma classe que não quer perder esse controle.
Em 2020 você e o MC Everton foram contemplados em um projeto de âmbito nacional e subiram ao palco com Zélia Duncan. O que isso significou para sua carreira?
Quatro artistas do Pará passaram nesse projeto, através de um edital nacional. Fomos um deles e ter sido contemplado foi muito importante, uma vez que nosso trabalho está sendo reconhecido e agora em nível nacional. Sem contar que estar no mesmo palco de artista acima da média, como Zélia Ducan. Foi incrível essa experiência.
Qual sua opinião sobre a mobilidade urbana das comunidades periféricas para ocupar os espaços culturais da cidade: museus, teatros, praças?
Essa já é uma discussão que abordamos há muito tempo. Anteriormente as batalhas de rap aconteciam no centro da cidade de Belém, onde a malha viária de transporte é frequente. Porém, optamos por descentralizar para levar a cultura até essas comunidades periféricas. Os perigos que esses jovens passam para se locomover pela cidade são diversos, como violência, a abordagem policial por conta do preconceito, etc. Sem falar que, muitas vezes, o serviço de aplicativo de mobilidade urbana não quer entrar na área periférica por medo da violência, de assaltos; também a parada de ônibus fica distante da casa do jovem. Enfim, descentralizar as batalhas foi uma maneira de conexão a outras formas culturais para quem não tem esses acessos devido à dificuldade do transporte . O deslocamento do jovem na periferia além de ser muito difícil é muito perigoso também.
Como você aborda esse direito do acesso à cidade da periferia nas suas músicas?
Sempre uso a referência de uma canção minha “minha rima em todo canto, vamos para Icoaraci.” Ou seja, não estamos de corpo presente em todos os espaços, mas estar nas praças, nas redes sociais, é uma forma de difusão do nosso trabalho. Muitas vezes, é difícil se deslocar para certos lugares, o acesso é difícil para entrar, mas através de oficinas e palestras nas escolas por meio de projetos isso se torna possível. Também é comum que os aplicativos de mobilidade urbana cancelam nossas corridas, por causa desse preconceito de certas regiões serem violentas e perigosas.
As batalhas de rap nos espaços públicos são uma forma de democratização desses lugares?
O jovem periférico é invisível. Não temos voz nos grandes veículos de comunicação. Não estamos todo tempo na mídia, não somos o galã da novela principal. E por quarenta e cinco segundos de batalha rap aquele jovem se torna visto e reconhecido por conta da sua rima. Pra mim é importante levar essas pessoas que a sociedade criminaliza, discrimina, para os centros urbanos, porque só o fato de estar ali já é uma forma de grito, de protesto, para mostrar nossa potência, nossa arte. É um tapa na cara da sociedade.
Muito Bom!!! Realmente interessante.