“Além de ser preto, é viado”. A fala carregada de preconceito e violência foi ouvida incontáveis vezes por Natasha Wonderfull, mulher transexual, negra e nordestina. Assim como 90% das pessoas trans no Brasil, durante grande parte da vida Natasha encontrou na prostituição a única forma de garantir sua subsistência diante da dificuldade de inclusão no mercado de trabalho.
Nota do Expresso na Perifa: antes de continuar, preparamos o quadro abaixo com os principais termos que envolvem a identidade de gênero. Pode ajudar quem não estiver familiarizado ou tiver dúvida. Boa leitura 🙂
Identidade de gênero é a percepção que uma pessoa tem de si mesma como sendo do gênero masculino, feminino ou de alguma combinação dos dois, independentemente do sexo atribuído no nascimento. A mulher trans se identifica como mulher, mas ao nascer foi atribuído a ela o sexo masculino O homens trans se identifica como homem, mas ao nascer foi atribuído a ele o sexo feminino Outras pessoas trans não se identificam de modo algum com o espectro binário de gênero O termo transgênero é usado para descrever uma variedade ampla de identidades de gênero em que aparência e características são percebidas como atípicas. Inclui transexuais, travestis, cross-dressers e quem se identifica como terceiro gênero.
Nascida na região de Garanhuns, em Pernambuco, Natasha Wonderfull tem a trajetória marcada por um processo de deslocamento. Ela esteve em muitos lugares, sempre na direção de uma vida melhor e na tentativa de se afastar da realidade imposta no mercado do sexo. Por volta dos 12 anos, mudou para a cidade alagoana de União dos Palmares. De lá foi para Maceió. Viveu também em Minas, São Paulo e no exterior. Até que voltou para a capital de Alagoas.
Hoje, aos 50 anos, Natasha é técnica de enfermagem e atriz. Não precisa mais se prostituir e encontrou na arte e na área da saúde motivações para levantar todos os dias da cama, sair de casa e ajudar outras pessoas. Trabalha no programa municipal Consultório na Rua, que atende pessoas em situação de vulnerabilidade social em Maceió, e preside a Associação Cultural de Travestis e Transexuais em Alagoas.
“Aqui em Alagoas as travestis não têm estudo. Algumas foram embora e outras morreram. Eu terminei o segundo grau com muito sacrifício e, como não sou concursada, tenho medo de precisar voltar para as ruas”, afirma Natasha. “Ser trans ou travesti não é fácil, principalmente quando a gente vem da roça. Minha mãe morreu quando eu tinha 12 anos e precisei trabalhar cortando cana, plantando batata. Às vezes, ganhava só a comida e ainda apanhava porque parecia com mulher.”
O temor pode ser explicado pelas frias estatísticas sobre as mulheres trans no País que mais mata. Além da maioria ter a prostituição como única fonte de renda, é na rua que muitas delas são assassinadas.
Dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) informam que 43% das transexuais e travestis mortas no Brasil em 2020 estavam no Nordeste. O estado alagoano foi o 6º com o maior número de assassinatos, com oito mortes registradas, atrás apenas de Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Ceará e São Paulo
Respeito à identidade de gênero — No trabalho como técnica de enfermagem na capital alagoana, Natasha não precisa temer por sua identidade de gênero. Durante uma palestra no TEDxPajuçara, em 2019, ela fala que o colete que usa na atividade legitima a profissional de saúde que é.
“Eu chego na comunidade e não sofro preconceito. Sou técnica de enfermagem, mas ali sou médica, sou tudo. As pessoas me veem como uma grande doutora e respeitam o meu gênero, me chamam de tia, de senhora. Todo o amor que eu não tive, eu dou para aquele povo”, diz.
Fora das periferias, no entanto, Natasha conta que o preconceito é maior e os hospitais têm mais resistência em contratar pessoas transexuais. “A sociedade tem uma visão de que travesti e mulher trans só podem ser prostitutas. Os hospitais olham o meu currículo e não aceitam. Aí, como no Consultório na Rua eu ganho menos de um salário mínimo, preciso trabalhar como cuidadora também. É uma realidade que só quem é trans pode entender”, pontua.
‘Sem a arte eu fico perdida’ — É nos palcos do teatro, ponto central dos olhares da plateia, que Natasha expressa seus sentimentos e fala de suas vivências como uma mulher transexual com a confiança de quem nasceu para o ofício.
À frente da Associação Cultural de Travestis e Transexuais em Alagoas, em 2014 ela criou o grupo Transhow para dar visibilidade a artistas transexuais e buscou apoio de organizações e diretores de teatro para viabilizar espetáculos e, nesse movimento, desconstruir estereótipos negativos e mostrar que a cultura é um espaço a ser ocupado pela população LGBTQIA+.
“Eu sempre gostei dos palcos, só que eu não tive oportunidade de trabalhar com isso porque eu tinha que me prostituir. O teatro é minha vida, sem a arte eu fico perdida. O palco é como um templo e a enfermagem também”, reflete Natasha.
A associação ainda enfrenta desafios para pagar um cachê justo às artistas, mas Natasha já vê uma melhora desde que o projeto foi iniciado. No início, as pessoas não acompanhavam os espetáculos,por preconceito, mas hoje, as artistas têm conquistado um público mais fiel.
VEJA A PALESTRA DE NATASHA WONDERFULL NO TEDxPAJUÇARA