Em sua primeira declaração ao País depois de indicado, o futuro ministro da Educação disse “não à instrumentalização da educação com finalidade político-partidária”. Poderia ter dito “não” a deixar gerações terminarem a escola sem compreender o que leem
A educação pública brasileira tem problemas que – felizmente – estão claros para a maioria das pessoas. Não é preciso ser especialista na área para saber que as crianças não aprendem, que os professores não são formados da maneira adequada, que os adolescentes cada vez mais se desinteressam pela escola. Digo felizmente porque só com o diagnóstico podemos buscar a cura.
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Mas, nos últimos meses, o debate político colocou holofotes em uma nova doença para a educação: a ideologização. Não que ela não existisse, mas seria equivalente a uma dor nas costas em um paciente com câncer. E que médico colocaria todos seus esforços para curar apenas essa dor?
Na semana passada, a comunidade educacional respirou aliviada por poucas horas quando surgiram notícias de que o presidente eleito Jair Bolsonaro havia escolhido o educador Mozart Neves para o Ministério da Educação. A satisfação não vinha apenas do fato de ele ser um dos nomes mais respeitados da área atualmente, afeito ao diálogo, de perfil moderado, com experiência em cargos públicos, na academia e no terceiro setor. Imaginava-se que, enfim, o novo governo iria passar a discutir as reais questões da educação.
Mozart e outros tantos especialistas sabem que é preciso alfabetizar todas as crianças até os 8 anos, reformular currículos ultrapassados, criar uma nova carreira do professor, investir na primeira infância e modernizar o ensino médio. E estudaram as formas de fazer isso, conhecem as evidências do que funciona e não funciona no Brasil e lá fora.
Mas a bancada evangélica do Congresso conseguiu voltar o foco para o que é menos importante. Cobrou que o novo ministro tivesse “afinidade ideológica”. O presidente eleito, que tinha gostado da conversa com Viviane Senna em que ela sugeriu políticas com impacto na aprendizagem, foi lembrado do que havia repetido durante a campanha eleitoral. Escola sem partido, doutrinação, inocência das crianças voltaram a ser as grandes questões da educação.
E o ministro finalmente anunciado pelo Twitter foi o filósofo conservador Ricardo Vélez Rodríguez. Em sua primeira declaração ao País depois de indicado, por meio de uma carta, disse “não à instrumentalização da educação com finalidade político-partidária”. Poderia ter dito “não” a deixar gerações terminarem a escola sem compreender o que leem.
Mesmo pregando que a educação não é lugar de política, o futuro ministro gastou boa parte da carta para exaltar a vitória de Bolsonaro. Disse que o eleito explicitou o “desejo de ver consolidada uma nova forma de fazer política, longe das velhas práticas clientelistas e da tradicional negociação de cargos por benefícios pessoais”.
A carta termina com o slogan que marcou a eleição: Brasil acima de tudo, Deus acima de todos. Vamos torcer para que Rodríguez esteja apenas agradecido pela honrada função. Mas que, acima de qualquer coisa, ele esteja preocupado mesmo em garantir que as crianças aprendam
A única dica sobre futuras políticas educacionais foram descrições não muito claras do papel das cidades. “O sistema educacional deve olhar mais para as pessoas ali onde elas residem: nos municípios”, escreveu. É o que pede a Constituição: escolas de ensino infantil e fundamental são responsabilidade das prefeituras.Por estarem mais próximas dos cidadãos, as administrações municipais entenderiam melhor as necessidades da educação local e teriam mais facilidade em fazer mudanças. Mas, muitas vezes, faltam dinheiro e profissionais preparados para políticas de qualidade. Seria preciso entender melhor como ele pretende resolver o problema.
A carta ainda termina com o slogan que marcou a eleição: Brasil acima de tudo, Deus acima de todos. Vamos torcer para que Rodríguez esteja apenas agradecido pela honrada função que recebeu do presidente e tenha querido deixar clara sua lealdade. Mas que, acima de qualquer coisa, ele esteja preocupado mesmo em garantir que as crianças aprendam.
*A jornalista Renata Cafardo é repórter especial do Estado e fundadora da Associação de Jornalistas de Educação, a Jeduca
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