Tenho uma filha de 3 anos que adora azul. Sempre que pergunto qual meia ou camiseta quer usar, corre para pegar uma azul na gaveta. Ela tem roupas rosas. Mas raramente as escolhe. Ela também não gosta de banana. Quando ofereço frutas, invariavelmente pede melão ou melancia. Já meu filho de 6 anos – vejam só – também adora azul. Mas prefere manga e morango.
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E o que isso tudo quer dizer? Nada. Porque obviamente não há cor de menino e cor de menina, como não há frutas para meninos ou frutas para meninas. E, se tiver que me preocupar com algo, pensaria estratégias para fazê-los variarem a alimentação e não as cores das roupas.
[A fala da ministra] usa estereótipos que enfraquecem o papel da mulher na sociedade e prejudicam sua educação
Mas a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, quer inaugurar uma nova era. Em que meninas vestem rosa e meninos vestem azul, disse em vídeo, como se comemorasse a façanha. Fora o fato de que essa era não tem nada de nova – ainda caminhamos para acabar com a desigualdade entre homens e mulheres –, a ministra não se dá conta de quanto prejudica as meninas com declarações que parecem banais como essa.
Com a justificativa de atacar o que ela acha se tratar de “ideologia de gênero”, a fala usa estereótipos que não só enfraquecem o papel da mulher na sociedade, mas também prejudicam sua educação. Logo ela, que sofreu abuso sexual na infância e assumiu o cargo dizendo que sua luta seria pela defesa especialmente das meninas.
Os questionários feitos pelo Pisa mostram que os pais têm muito menos aspirações para suas filhas trabalharem em áreas de exatas do que para os filhos
Diversos estudos internacionais e nacionais mostram como a expectativa que se tem sobre o aluno – do professor ou dos pais – influencia enormemente na sua aprendizagem. Muitas vezes, mais até do que a origem socioeconômica da criança. Ou seja, professores que acreditam que seus estudantes vão aprender, e deixam claro isso para eles, conseguem os melhores resultados.
Mas pesquisas também indicam que as expectativas são diferentes para alunos e alunas. É sabido que, na maior parte dos países, as meninas se saem pior em avaliações de Matemática do que os meninos, como no Pisa, feito pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). E isso acontece muito por questões culturais e de motivação.
Os questionários feitos pelo Pisa mostram que os pais têm muito menos aspirações para suas filhas trabalharem em áreas de exatas do que para os filhos. E que as meninas se sentem mais ansiosas e com medo de falhar diante de questões de Matemática ou Ciência.
A desigualdade da sociedade acaba sendo reproduzida nas escolas. E deixa as meninas apenas com o lado rosa da história
Essa diferenciação, segundo especialistas, começa na primeira infância, na escolha de brinquedos, por exemplo. Meninos ganham blocos de montar, jogos de estratégia, que estimulam o raciocínio. Meninas ficam com bonecas e panelinhas, que ensinam a ser mamãe. São como o azul e o rosa.
O Brasil é um dos países onde há maior diferença entre resultados nas provas de meninos e meninas em Matemática, assim como Chile, Itália, Líbano. Já as nações asiáticas, que estão no topo do ranking do Pisa, têm diferença menor. Na Finlândia, considerada modelo de educação, as meninas chegam a se sair até melhor que os meninos.
O mesmo ocorre na prova mais importante do País, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Tabulação feita pelo Estado em 2018 mostrou que as mulheres se saem pior nas quatro áreas, Ciências da Natureza, Ciências Humanas, Linguagens e Matemática. E, quando se analisam as melhores notas do Enem, mais de 70% são de candidatos do sexo masculino. A ciência já deixou claro que não há qualquer diferença no cérebro de homens e mulheres com relação à cognição, em áreas do raciocínio lógico, muito menos na inteligência.
Tudo se resume a uma cruel desigualdade da sociedade que acaba sendo reproduzida nas escolas. E deixando as meninas apenas com o lado rosa da história.
*Renata Cafardo é repórter especial do Estado e fundadora da Associação de Jornalistas de Educação (Jeduca)