Há 10 anos, as trabalhadoras domésticas conquistaram a igualdade de direitos trabalhistas em relação aos demais trabalhadores urbanos e rurais. Essa conquista histórica aconteceu por meio da Emenda Constitucional nº 72, conhecida como PEC das Domésticas, que possibilitou a formalização da profissão, a assinatura da carteira de trabalho e a concessão de benefícios como o pagamento de horas extras, férias remuneradas, 13º salário, salário-maternidade, dentre outros.
Desde antes do início da remuneração, o trabalho doméstico já era racializado. As mulheres negras sempre desempenharam majoritariamente a função do cuidado. No mercado de trabalho, isso pouco se alterou: em 2022, por exemplo, 92% dos trabalhadores domésticos eram mulheres e 65% eram negros, segundo a PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios).
“Uma das grandes mudanças provocadas pela ‘PEC das Domésticas’ está no seu potencial político simbólico, nas reflexões sobre a maneira como essas contratações eram realizadas no país e o teor de ‘reparação histórica’ propiciado pela articulação das alianças políticas formadas naquele momento”, constatou Thays Almeida Monticelli, mestre e doutora em Sociologia, em artigo publicado sobre o tema.
Apesar da legislação, ainda há muito a ser feito para garantir que essas trabalhadoras não sejam expostas a condições precárias para o desenvolvimento de suas atividades. Grande parte delas não são contempladas pela lei: em 2022, 74,8% das trabalhadoras domésticas ainda não têm carteira assinada.
A lei também definiu, pela primeira vez, o princípio de vínculo empregatício para essas trabalhadoras. O artigo 1º diz que: “considera-se empregado doméstico, para os fins desta Lei, aquele que presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana”.
Nesse contexto, como ficam aquelas que trabalham menos de dois dias para o mesmo empregador ou família? Apesar de não contemplado pela legislação, o trabalho de diarista nos serviços domésticos existe desde muito antes da PEC. Em 1992, por exemplo, já eram 16,5% das trabalhadoras domésticas e, em 2008, 26,5%, de acordo com microdados da PNAD.
Thays investigou dados referentes a essas trabalhadoras entre 2011 e 2017 e descobriu que a formalização impactou sua renda média mensal. Nesse período, as mensalistas com carteira assinada foram as que recebiam mais, seguidas das diaristas e, por fim, das mensalistas sem carteira.
Ainda de acordo com a PNAD Contínua, em 2011, enquanto as mensalistas com carteira assinada recebiam em média R$654,36; as diaristas recebiam R$516,40; e as mensalistas sem carteira assinada, R$360,66. Em 2017, esses grupos receberam R$1.221,42, R$877,58 e R$594,94, respectivamente.
Um fenômeno que tem crescido ao longo do tempo é a contribuição das diaristas para o INSS (Instituto Nacional de Seguro Social), seja como Microempreendedoras Individuais (MEI) ou por meio de previdências privadas. Com essa formalização, elas conseguem um pouco mais de segurança trabalhista para o presente e o futuro.
A reportagem conversou com três diaristas para entender suas trajetórias dentro do trabalho doméstico e suas satisfações e demandas em relação à profissão.
“Se eu ficar muito tempo em casa, como eu vou pagar as contas?” – Sizina Maria do Nascimento, de 52 anos, é baiana e mora no estado de São Paulo desde 1991. “Já trabalhei como doméstica, dormia e morava no trabalho. E aí tive um relacionamento e quatro filhos. Depois de um tempo, larguei isso para trabalhar como diarista, em 2001. É o que eu gosto de fazer”, conta. Hoje, ela mora em Itaquera, na zona leste da capital.
“Nem fui eu que escolhi trabalhar como diarista, foi uma patroa para quem trabalhei 25 anos. Ela falou assim: ‘eu não quero que você largue os seus filhos para ficar trabalhando direto, porque aí você não vai poder dar atenção para eles’. Na época, a minha filha Vanessa tinha acabado de nascer, e já está com 22 anos agora”, recorda.
Desde 2018, Sizina paga uma previdência privada. E o que a motivou foi um problema de saúde. “Eu fui fazer uma cirurgia e pensei ‘ah, meu Deus, se eu ficar muito tempo em casa como eu vou pagar as contas?’”, recorda.
Para ela, ser diarista é um trabalho cansativo, apesar do gosto pela limpeza. Acorda entre às 5h e 6h todos os dias e trabalha em seis casas por semana. Às vezes também é contratada para serviços de buffet e para servir almoços ou jantares.
Durante todo esse tempo como trabalhadora doméstica, Sizina conta que já presenciou e ouviu muitos comentários ruins e maldosos por parte dos empregadores. “Tem uns que falam ‘sebo nas canelas’ [em relação a trabalhar mais rápido], mas aquele é o meu ritmo, eu não consigo fazer além”, argumenta. “Eu também já passei por situações em que a pessoa não tinha coragem de dar um prato de alimento, nem que seja um arroz com ovo e feijão, ou um copo de café”, recorda.
“Ainda persiste a ideia de que a diarista não pode ter voz” – Késia de Souza Costa, de 36 anos, mora em Joinville, Santa Catarina, e há três anos é trabalhadora doméstica. Preocupada com a aposentadoria, ela logo abriu um MEI. “Eu não quero necessariamente depender do INSS. Ainda estou no início dessa carreira, mas é uma profissão muito rentável”, pontua.
Aos 10 anos de idade, Késia perdeu sua mãe e, aos 15, começou a trabalhar junto com a irmã mais velha que, na época, era trabalhadora doméstica em uma casa onde moravam 16 pessoas. “A gente dormia lá de segunda a sexta, e eu era babá naquela casa. Ali, tive minhas primeiras experiências profissionais, ajudando a limpar. Minha irmã me ensinou muitas coisas, e depois, me profissionalizei”, conta.
Késia também se formou em Educação Física e atuou em diversas outras áreas: foi corretora de imóveis e até proprietária de um food truck. Voltou a trabalhar com limpeza por necessidade, após inaugurar uma marca de alimentos e precisar de dinheiro para comprar equipamentos profissionais para a cozinha.
“Como eu já tinha afinidade com a limpeza, além de ter sido proprietária de um food truck com padrões rigorosos, foi uma escolha natural. Logo, tive uma grande demanda, fila de espera, e cheguei a um ponto em que não conseguia conciliar as duas profissões. Tive que escolher e optei por ser diarista”, conta.
Hoje, ela presta serviços de limpeza detalhada para um público específico e muito rigoroso. Conta que, em algumas casas em que atende, já trabalham outras diaristas ou mensalistas e ela é chamada para fazer um trabalho que exige um pouco mais de técnica, como a limpeza de vidros.
“O que eu gosto na profissão de diarista é a liberdade que tenho como profissional. Tenho minha carteira de clientes e, se não estiver satisfeita com algum deles, posso sair e buscar outro”, aponta. “Eu também gosto de ver a transformação dos lares e das vidas por meio da limpeza. Tudo muda com uma casa limpa”.
Para Késia, porém, muitas pessoas ainda veem a profissão de diarista de maneira muito rígida e controladora. “Persiste a ideia de que a diarista não pode ter voz, não pode dizer como deseja trabalhar. Existe essa mentalidade enraizada de que a diarista deve se submeter ao desejo do cliente. Na realidade, a forma de trabalho deve ser definida em conjunto, e o cliente também precisa se adaptar às condições e acordos estabelecidos”, defende.
“Ter essa liberdade de fazer seu próprio horário e investir em cursos é um benefício” – Suzane Alves dos Santos tem 36 anos e mora em Itaquaquecetuba, região metropolitana de São Paulo. Porém, 99% de seus clientes estão na capital. “Eu também atendo em algumas cidades vizinhas, como Poá e Mogi das Cruzes. Já fui atender algumas clientes até em São Bernardo do Campo”, conta.
Moradora de São Paulo há 12 anos, Suzane é do interior da Bahia, e atua na área da limpeza desde 2021. “Eu e meu esposo tínhamos uma confecção. No entanto, com a pandemia, houve desgaste nos negócios. Meu esposo conseguiu emprego com carteira assinada e eu continuei vendendo roupas, mas estava fraco. Foi então que uma vizinha sugeriu que eu considerasse ser diarista”, recorda.
Sua rotina de trabalho é intensa, por isso, acorda em média às 5h30 para pegar o transporte público. Geralmente, leva cerca de duas horas para chegar ao destino.
“Devido à alta demanda, consegui preencher minha agenda de trabalho. Mas recebo muitos pedidos de indicação por meio do Instagram. Então, hoje em dia eu também contrato outras colaboradoras e forneço treinamento para que trabalhem no mesmo padrão que eu”, explica.
O acompanhamento dessas trabalhadoras também entra na rotina de Suzane, que dá suporte a elas e aos clientes. “Como faço tudo sozinha, é uma carga de trabalho considerável, mas graças a Deus tenho conseguido lidar com isso até agora”, pontua.
Para Suzane, esse é um ramo que está crescendo e sendo valorizado. A liberdade que o regime diarista proporciona é uma das coisas que ela mais gosta. “Quando se trabalha em regime CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), a situação é diferente. Ter essa liberdade de fazer seu próprio horário e investir em cursos é um benefício”, aponta.
Em relação à regulamentação da profissão de diarista, Suzane não acredita que seria aplicável ao seu regime de trabalho. Ela também se preocupa com o estabelecimento de um piso salarial abaixo do que ganha atualmente. “Algumas colegas minhas já cobram até R$600 por diária de trabalho de oito horas. Eu ainda não atingi esse patamar, mas já cobrei R$ 400 por diária”, conta.