Em dez perguntas e respostas, o que é preciso saber sobre a legalização do aborto e aprofundar um debate fundamental para a saúde e os direitos da mulher
ENTREVISTA: Nathália Diórgenes
Assistente social e pesquisadora analisa argumentos a favor e contra a legalização do aborto e as implicações sociais
Nos últimos anos, alguns países da América Latina legalizaram a interrupção voluntária da gravidez: em 2020, a Argentina aprovou uma lei que permite o aborto até a 14ª semana de gestação. Em fevereiro de 2022, a Colômbia descriminalizou o aborto até a 24ª semana. Entre os países da região que endureceram as regras, Honduras reformou em 2021 o artigo da Constituição que proíbe a interrupção em qualquer circunstância, criando um escudo contra futuras mudanças na proibição. Em março deste ano, a Guatemala aprovou uma legislação que aumenta a pena de prisão por aborto no país.
A discussão no Brasil não tem avançado. Por lei, o aborto é permitido no País se houver risco de vida para a mulher, em caso de estupro e quando o feto é anencéfalo. Números oficiais divulgados em 2018 pelo Ministério da Saúde mostram que ocorrem 1 milhão de procedimentos induzidos ao ano, mas essas são só as interrupções que chegam ao serviço de saúde — o que especialistas acreditam representar só a metade. Os clandestinos não entram na conta.
Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto de 2016 (PNA 2016), conduzida pela antropóloga Débora Diniz e o sociólogo e economista Marcelo Madeiro, “o aborto é um fenômeno frequente e persistente entre as mulheres de todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e religiões: em 2016, quase 1 em cada 5 mulheres, aos 40 anos, já realizou, pelo menos, um aborto. Em 2015, foram aproximadamente 416 mil mulheres. Há, no entanto, heterogeneidade dentro dos grupos sociais, com maior frequência do aborto entre mulheres de menor escolaridade, pretas, pardas e indígenas, vivendo nas regiões norte, nordeste e centro-oeste. Como já mostrado pela PNA 2010, metade das mulheres utilizou medicamentos para abortar, e quase a metade das mulheres precisou ficar internada para finalizar o aborto.”
Na tentativa de aprofundar o debate e esclarecer pontos importantes sobre o aborto e as desigualdades encarnadas no cenário brasileiro, a reportagem entrevistou a assistente social e pesquisadora Nathália Diórgenes. Graduada em Serviço Social, mestre e doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Nathália é pesquisadora de saúde da mulher, direitos sexuais e reprodutivos, saúde pública e gestão de políticas públicas.
O QUE É O ABORTO?
É o processo de interrupção espontâneo ou voluntário da gestação.
COMO É REALIZADO O ABORTO LEGAL E SEGURO?
No Brasil, se faz o procedimento mais comum: o aborto medicamentoso seguido de curetagem. Há um protocolo de uso de um só medicamento chamado misoprostol. A curetagem é a raspagem uterina dos restos do embrião, dos restos fetais que não podem ficar retido porque podem gerar complicações, como infecção.
Essas são as formas utilizadas no Brasil, mas há outras: tem uma chamada Amiu, que é o procedimento mais indicado. É a aspiração manual intrauterina até a 10ª semana de gestação e é minimamente invasiva, as mulheres já saem de lá andando. Mas como é uma aspiração, acaba criando todo um mito de que está aspirando um bebê, mas ela só pode ser feita ali no início da gestação, na etapa embrionária.
DURANTE O PROCEDIMENTO, O EMBRIÃO SENTE DOR?
O sistema nervoso central é o receptor das sensações. Então é preciso ter isso funcionando para que se possa sentir dor. Ele começa a ser formado a partir da 12ª semana de gestação, que é mais ou menos até esse momento que os países legalizaram o aborto. Então: não, não sente dor. Por isso que a gente defende que o procedimento seja realizado o mais cedo possível.
A MULHER SENTE DOR?
Em relação à mulher, precisamos falar de dois cenários. Nos abortos insalubres, clandestinos, ilegais, as mulheres fazem um aborto precarizado, desasistido, muitas vezes sozinhas, às vezes os restos fetais ficam retidos e elas pegam uma infecção. Nesse cenário, sim, as mulheres sofrem. Em outros contextos, tomando uma dose certa do medicamento, sendo assistidas, tendo segurança, a dor geralmente é menor. E com o Amiu não existe dor, é dada uma anestesia local e o procedimento dura 40 minutos ao todo.
EM QUE CASOS O ABORTO É PERMITIDO NO BRASIL HOJE?
Precisamos frisar que nós temos uma legislação que remonta ao império, que é a primeira vez que uma lei menciona o aborto. Em 1940, a gente vai ter dois permissivos: em caso de risco de vida para a mulher e em caso de estupro [Em 2012 foi permitido o aborto de fetos anencéfalos]. Mas o que é risco de vida para a mulher? É o médico que vai dizer, não tem um parâmetro. Então se uma mulher fica grávida e tem risco de eclâmpsia – que é pressão alta na gestação – que pode ocasionar a morte gestacional e a dela, pode fazer o aborto? É muito difícil, geralmente consideram a gravidez de risco, pré-natal de risco, mas não permitem o aborto. Aí, no momento do parto, podem acabar morrendo a mulher e o bebê. Em 10 anos eu nunca acompanhei um aborto legal em situação de risco para a mulher.
E em casos de estupro, basta procurar o serviço de saúde. Não precisa denunciar, não precisa fazer o Boletim de Ocorrência. No Código Penal, a gente não tem um parâmetro de quantas semanas tem que ter para poder fazer. Há um conselho de fazer até a 22ª semana, mas às vezes entendem até a 26ª semana, inclusive porque muitas mulheres não sabem que esse direito existe. Para quem tem internet, ok, mas muitas mulheres têm dificuldades de acesso à tecnologia. Essa desigualdade afeta mais a população negra e pobre do país.
PROIBIR O ABORTO NO BRASIL GARANTE QUE ELE NÃO VÁ ACONTECER?
Não. As condições de vida que levam a mulher a recorrer ao aborto são muito mais fortes do que a criminalização em si. Tem mulheres presas por aborto nesse país, mas a condenação é muito mais no sentido moral do que outra coisa. Quando uma mulher fica grávida e ela quer fazer um aborto, ela vai ter que ter R$3 mil reais para ir em uma clínica e fazer. Essa clínica é boa? Não necessariamente, há vários relatos de mulheres que foram estupradas em clínicas caras onde estavam para fazer o aborto. O estigma e o sofrimento fazem parte da vida das mulheres.
As mulheres negras também vão passar por tudo isso. Tem uma pesquisa que faz a relação entre meninas muito novas que recorrem ao tráfico para conseguir abortar, em uma comunidade muito pobre do Rio de Janeiro. Que legislação é essa que deixa meninas de 15/16 anos à mercê de uma situação degradante como essa? É um descaso enorme com as mulheres. Então, as mulheres pobres conseguem abortar, mas precisam recorrer a esses meios, fazem o aborto mais tardiamente, às vezes porque não têm o dinheiro do transporte.
É preciso não tratar o aborto como se fosse uma pauta secundária. É uma pauta que tem a ver com cidadania, com trabalho, com tudo. Há uma desigualdade no acesso e as mulheres vão recorrer a mercados clandestinos, vão ter sequelas, e tudo isso sozinhas. Tem várias pesquisas que mostram que as mulheres negras são as mais sozinhas em relação ao aborto.
Então, não, proibir o aborto não garante que não vai acontecer. Elas não fazem porque elas gostam, elas precisam. Se todo esse sofrimento que elas irão passar fazendo o aborto não as impede, não é uma lei de um Código Penal de 1940 que vai conseguir proibir as mulheres. O que o Código Penal faz? As mulheres sofrerem
QUAIS AS PRINCIPAIS RAZÕES PARA O ABORTO SER PROIBIDO EM DIVERSOS PAÍSES DO MUNDO?
O que mais pega é o argumento da vida desde a concepção: que ali já tem uma vida e a vida precisa ser garantida e preservada. Alguns fundamentalistas, que se denominam pró-vida, afirmam que a legalização do aborto é de interesse de organismos internacionais para conter a população dos países em desenvolvimento por causa do capitalismo.
QUAIS AS PRINCIPAIS RAZÕES PARA A INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO SER LEGALIZADA EM ALGUNS PAÍSES?
O primeiro argumento é o da saúde: muitas mulheres fazem aborto, a proibição não inibe a prática e as mulheres morrem, sofrem e adoecem pelo aborto ser criminalizado. Uma outra questão que se fala é o direito à própria capacidade reprodutiva. Tem outros argumentos também como “o aborto legal é mais barato que uma curetagem”, mas eu não concordo muito, tem a ver com o direito à própria vida, não com não gerar gastos ao Estado.
SE HÁ TANTOS MÉTODOS PARA PREVENIR A GRAVIDEZ, POR QUE O ABORTO LEGAL PRECISA EXISTIR?
Porque isso é um mito. Eu não vou entrar no debate das mulheres que podem pagar, porque elas podem usar muitos métodos. Mas para quem depende do SUS [Sistema Único de Saúde], é pobre, da periferia, é diferente.
As mulheres já trabalham mais do que os homens recebendo menos, não moram perto do trabalho, então passam muito tempo no transporte, chegam em casa e cuidam da casa, dos filhos e da alimentação. E se elas esquecerem um dia o anticoncepcional são criminalizadas.
Um caso que eu acho interessante citar é o de duas mulheres do Rio de Janeiro que, em 2014, morreram em uma clínica durante o procedimento. Uma teve o corpo esquartejado e queimado e a outra teve o corpo jogado em uma vala comum. As duas já eram mães, tinham família, e fizeram o abortamento porque tinham conseguido um emprego para sustentar os filhos.
No caso do DIU, o Dispositivo Intrauterino, ele precisa de uma campanha no Brasil para tirar os mitos sobre ele. As mulheres ainda têm muita resistência por não compreenderem esse método porque não tem educação sexual no país. Elas não são obrigadas a entender coisas que elas não foram preparadas para entender.
E a cereja do bolo são os métodos falhos. As mulheres podem fazer tudo certinho e ainda tem chance de falhar. Nenhum método é 100% eficaz. Então, obviamente o abortamento legal tem de ser acompanhado de educação sexual, de uma política pública eficiente e eficaz de contraceptivos.
O ABORTO É UMA QUESTÃO CRIMINAL OU DE SAÚDE PÚBLICA?
O aborto é uma questão de saúde pública porque, no nosso país, temos um número oficial de 1 milhão de abortos por ano, que são de abortos que chegam nos serviços de saúde. A Débora Diniz, em uma pesquisa chamada Pesquisa Nacional de Aborto 2016, cita um dado interessante: metade dos abortos feitos no Brasil chegam no serviço de saúde. Então não é 1 milhão, por baixo são 2 milhões. E são feitos nos contextos mais adversos possíveis.
As mulheres abortam por diversas questões: porque não querem a gravidez, por serem abandonadas pelos parceiros, por não terem condições de cuidar de mais uma vida. Na minha pesquisa tem uma mulher que fez o aborto porque estava com um parceiro e ele disse que ia mudar, mas foi preso roubando novamente. As mulheres fazem aborto porque conseguiram entrar na universidade, conseguiram ascender por meio da educação e não querem interromper sua trajetória por causa disso. Outras fazem porque o parceiro mandou. O que tem em comum no que motiva essas histórias é que cada uma delas é digna, essas mulheres precisam ser acolhidas e ajudadas e não criminalizadas.
Temos de olhar para os contextos que são diversos. São mulheres jovens que fazem o aborto, em idade reprodutiva, e não têm autonomia financeira, mesmo as de classe média. Tem mulheres de classe média que vão fazer o aborto no motel, com uma amiga e um medicamento duvidoso, porque, apesar de ter dinheiro, ela não tinha como cuidar de um filho. Obviamente que as mulheres negras e pobres desse país vão ter outras questões.
Então o aborto é uma questão de saúde pública, de igualdade de gênero e de igualdade racial. As mulheres negras são maioria no aborto tardio, enfrentam as taxas mais altas de mortalidade durante a gravidez e muitas complicações com o parceiro. A violência atravessa a história dessas mulheres. A permissão do aborto é para estupro, mas essa não é a única forma de violência. Então, se a mulher estiver sob violência física ou psicológica, não é permitido.
Diante do que foi exposto, entendo que o aborto vem de, no mínimo, duas questões anteriores, quando afeta mulheres que querem abortar por não ter condições de criar a criança (excluídos os casos de problemas de saúde): o controle da natalidade e educação sexual. Deve-se investir, gastar energia e tempo nas alternativas mais simples/rápidas para controle da natalidade e para gerar conhecimento que impeçam a gravidez precoce ou indesejada, que atinjam um grande número da população, principalmente a mais suscetível a engravidar nessas duas condições, ao invés de tratar somente de aborto indefinidamente.
Se mudar a forma de comunicar, será que não atingiria mais pessoas e desta forma, descriminalizar o aborto não teria mais apoio?
Em vez do foco ser ‘Aborto é questão de saúde pública e de igualdade racial e de gênero’ como neste título, se dissesse apenas ‘Aborto é questão de saúde pública: mulheres pobres correm risco de vida’ será que não chamaria mais atenção.
A maioria das mulheres negras são pobre, mas nem toda mulher pobre é negra. E uma negra rica pode recorrer a uma clínica particular e realizar o aborto sem riscos.
Simplificar o discurso acaba atingindo mais pessoas. Se as que correm risco são mulheres pobres, a descriminalização melhoraria muito pois elas deixariam de correr risco de vida. Seria feito pelo SUS.