Biólogo Philip Martin Fearnside. Em entrevista ao Estadão, membro do painel da ONU afirma que rodovia pode impulsionar desmate
Com reportagem de Vinícius Valfré, O Estado de S.Paulo
No encontro dos rios Negro e Solimões, vive um cientista que fez parte de um grupo de pesquisadores laureado com o Nobel da Paz. Aos 75 anos, o biólogo americano Philip Martin Fearnside gosta de mostrar a quem o visita em Manaus uma tanimbuca de 600 anos. A árvore de mais de 30 metros, numa área do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), é uma das espécies mais valiosas da floresta.
No fim de junho, o professor recebeu o Estadão para uma conversa na qual falou sobre sua trajetória de quase 50 anos em defesa da Amazônia e da ciência. Sua maior preocupação no momento é o impacto da reconstrução da BR-319, que liga a capital amazonense a Porto Velho. Além da ameaça a terras indígenas, a rodovia, aberta pela ditadura militar, em 1976, poderá representar uma “catástrofe” para as metrópoles do Sudeste.
A expansão do desmatamento pode comprometer os “rios voadores”, os ventos que levam vapores d’água a diversas regiões do Brasil. A área de impacto direto a partir dos primeiros ramais da estrada, somente na zona de interesse da exploração de petróleo e gás, equivale a três vezes o Estado de São Paulo.
A conversa com a reportagem ocorreu a poucos quilômetros da grande árvore, em outro câmpus do Inpa, nas imediações do seu escritório, apinhado de livros, manuscritos e computadores. Fearnside é membro do Painel de Clima da ONU, premiado com o Nobel em 2007 pelos alertas sobre os riscos do aquecimento global. Ele despertou seu interesse pela área ambiental quando, mais jovem, remava pelos rios poluídos dos Estados Unidos.
Nascido na Califórnia e criado em Massachusetts, ele alerta para os riscos do efeito estufa desde os anos 1960. Fez pesquisas no Canadá e na Índia e morou numa agrovila da Transamazônica para o doutorado.
Mudou-se definitivamente para o Brasil em 1978. A mulher e as duas filhas são brasileiras. A seguir, os principais pontos da entrevista:
ESTADÃO — Qual a maior ameaça à Amazônia hoje?
PHILIP MARTIN FEARNSIDE — Nossa grande preocupação agora é a BR-319 e o que poderia acontecer naquele grande bloco de florestas no oeste do Amazonas que vai até o Vale do Javari. Seria catastrófica toda a abertura daquela área. São Paulo depende daquela parte da floresta para a sua chuva. Em 2014 faltou água para beber. No ano passado também teve seca. Mudou o padrão de secas. Não exatamente por causa do desmatamento, mas isso significa que tem menos margem. Parar de ter esse transporte de água da Amazônia para lá, com os chamados “rios voadores”, seria catastrófico para o Brasil.
Como a reconstrução dessa estrada seria um problema tão grave?
Até agora o desmatamento tem se concentrado no chamado “arco do desmatamento”, nas partes sul e leste da floresta. A BR-319 liga o arco do desmatamento com Manaus e migra os atores que desmataram tudo. E tem as estradas que seriam ligadas à rodovia. Ninguém fala sobre essas. Fingem que é só a estrada principal. Elas vão perfurar todas as unidades de conservação que foram criadas para barrar o avanço do desmatamento. Simplesmente isso leva os desmatadores para o outro lado. Também tem um grande projeto de gás e petróleo na área do Solimões. Isso daria impulso para fazer outras estradas. Tem todo um discurso de que terá governança, que a BR-319 vai ser ideal para o mundo. Mas hoje aquilo é uma terra sem lei. Não será da noite para o dia que vão começar a seguir as leis. Além disso, a área que seria aberta no oeste (da Amazônia, em consequência do acesso facilitado pela rodovia) não é área de terras não destinadas, as chamadas terras devolutas. E isso é mais atraente para grileiros. O bloco a oeste segura a situação ambiental no Brasil hoje.
Pesquisas pioneiras do Inpa apontam para esse cenário há anos. Diagnósticos que saem daqui são alarmantes. Por que é tão difícil sensibilizar governantes, o sistema político e formadores de opinião para o tamanho do problema?
Não deveria ser tão difícil. Mas é evidente que precisa mudar. As pessoas estão preocupadas com outros problemas e essas questões essenciais ficam de lado. Não é só questão de dinheiro. São recursos humanos e sociais.
O senhor já constatou que cerca de 20% da floresta foi desmatada e pode ser que cheguemos em breve a um “ponto de não retorno”. Como a floresta reage ao avanço do desmatamento?
A floresta fica enfraquecida e não consegue ter resiliência para resistir às secas. Tem trabalhos preocupantes que mostram que isso já acontece na parte sul. Há os pontos de não retorno, em que o sistema pode entrar em colapso e não voltar. Uma das coisas é o percentual da floresta que foi desmatado. Ninguém tem um bom número, mas se sabe que está perto. Na parte leste da Amazônia já podemos ter ultrapassado esse ponto. Um grupo do (climatologista brasileiro) Carlos Nobre, em 2007, publicou um trabalho sobre a relação de desmatamento e chuva, principalmente em épocas de seca.
Calcularam que mudaria o clima se cerca de 40% da floresta fosse cortada. Seria esse um ponto de não retorno. E aí, em 2018, o Nobre e Thomas Lovejoy (biólogo e ambientalista americano, que morreu em 2021) publicaram um editorial sugerindo que esse ponto seria entre 20% e 25%. Já estamos nos 20%. Na parte leste são bem mais de 20%. Além disso, tem a temperatura, que afeta a floresta e o clima global. Quando a temperatura aumenta, qualquer planta precisa de mais água para sobreviver. Então não chove e a previsão é de que tenham mais secas. Muitas árvores morreriam de sede.
Os trabalhos acadêmicos colocam claramente os riscos e consequências do desleixo ambiental. O senhor se sente contemplado, ouvido por outros setores?
A gente produz informações, publica trabalhos científicos, dou palestras. Ninguém é obrigado a ouvir e a tomar providências. A gente espera que isso tenha influência. As pessoas que são responsáveis pelas decisões que afetam o desmatamento têm de levar isso em conta. Mas não tem ocorrido recentemente.
E nota algum grupo político que realmente faz um debate sério a respeito dos problemas ambientais? O dito campo “progressista” dá ao tema o peso devido?
Há políticos interessados na frente ambiental no Congresso. Mas o outro lado é muito mais poderoso. Tem forte influência do agronegócio e outros atores em todas as decisões. Tem a boiada passando no Congresso. É perigoso perdermos todo o sistema de licenciamento ambiental, fragilizar áreas protegidas. As coisas que estão na pauta têm grandes riscos para o meio ambiente.
O senhor vive na Amazônia desde os anos 1970. Pode traçar uma cronologia da relação do homem com a floresta?
Houve altos e baixos. Nos anos 1970, tinha o governo militar que fez a Transamazônica, promoveu a Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia), financiou pastagens, serrarias. Coisas que levavam a muita destruição e colocavam mais processos de desmatamento. Teve o grande boom de construção de estradas. Em termos de criar unidades de conservação, o governo Fernando Henrique Cardoso fez mais. Em 2008, isso basicamente parou, tanto no nível federal quanto no Estado do Amazonas. Depois, houve vários avanços, como a demarcação de 40 milhões de hectares de terras indígenas, algo muito importante. Desde que entrou o atual governo, em 2019, não se criou nenhuma terra indígena e teve um monte de reveses de todos os tipos.
Quais os piores reveses?
Não são só as coisas concretas, de desmantelamento de Ibama, ICMBio (órgãos ligados ao Ministério do Meio Ambiente) e Funai (Fundação Nacional do Índio). A mensagem que se passa é igualmente grave: de que se pode violar leis ambientais e que depois será anistiado. Tem a sequência de leis que facilitam a grilagem de terras. Cria uma expectativa de que tudo vai continuar, de que pode invadir áreas preservadas e vai dar tudo certo. É mais fácil recuperar órgãos, orçamentos. Mas a mensagem é algo muito pernicioso e difícil de ser revertido.
O senhor considera que em 2019 começou um retrocesso sem precedentes?
O mundo está mais preocupado, percebe o efeito do aquecimento global. Mas no Brasil isso não mudou a política do governo, que continua negando a existência de mudança climática antropogênica e minando coisas relevantes. Obviamente, existe gente no Brasil tentando fazer coisas, mas não de cima para baixo.
Acredita que o modo como o País lida com a temática ambiental muda significativamente a partir de 2023?
Depende de quem ganhar a eleição. Se for (o presidente Jair) Bolsonaro, talvez continuemos os problemas de hoje. Se for (o ex-presidente) Lula, ele fala coisas mais favoráveis ao meio ambiente, pelo menos em termos do desmatamento e de povos indígenas. Mas na parte de hidrelétricas temos outra questão. Lula foi o responsável pelas barragens do Rio Madeira, de Belo Monte. Ele deu entrevistas recentes dizendo que faria tudo de novo. Em um canal francês, foi perguntado se estava arrependido do desastre em Belo Monte. Ele justificou tudo. Falou que foi muito bom, que gastou milhões na parte social. Fiquei com a cara no chão. Tem de ver o que vai acontecer nas diferentes partes da área ambiental.
Recentemente o senhor sofreu ataques xenófobos. É cansativo fazer ciência? Não fica incomodado por de certa forma falar sozinho e sofrer represálias?
Existem dificuldades. Essas coisas desagradáveis realmente podem acontecer. Mas se isso te impede de fazer as coisas, ninguém faz nada. É importante não ser fatalista, achar que tudo vai acabar e que não há o que se fazer. São coisas que dependem da decisão humana. E essa precisa ter informações para decidir. É o que fazemos.
Nos últimos anos cresceu a preocupação internacional com a Amazônia. Na campanha, (o presidente americano) Joe Biden fez críticas ao governo Bolsonaro. Como define essa preocupação de atores mundiais com a floresta?
Tem muita oportunidade para esse tipo de ajuda. Mas o Brasil tem de oferecer um meio para que os países que contribuam tenham certeza de que isso vai ajudar o meio ambiente. Só que o governo está querendo doação para o orçamento do Brasil. Aí não. Se não vai para emendas parlamentares e tudo o mais o que o governo queira fazer. Tem de ter estrutura institucional que garanta que a coisa seja usada para o meio ambiente. O Fundo Amazônia infelizmente foi praticamente destruído pelo atual governo, que violou acordo com países doadores. Tem de ser reconstruído. Há uma versão de que a proposta de permitir a exploração de terras indígenas tem a ver com a produção para a segurança alimentar e desenvolvimento econômico. O Brasil não precisa disso. Tem a propaganda que se não fizer isso as pessoas vão passar fome. Mas o Bra sil já é o maior exportador do mundo de carne de boi e soja.
Significa que mais que se desmata é para exportação. Não é para a população brasileira comer. É uma coisa que não é necessária. Você está jogando fora a parte ambiental e social e não tem essa necessidade que está sendo retratada.
O que os assassinatos de Bruno Pereira (indigenista) e Dom Phillips (jornalista) representam para a proteção da floresta?
É um sinal de como as coisas estão. Espero que as pessoas estejam acordando para essa terra sem lei, para o desmonte da Funai. É uma tragédia grande e representa muitas outras coisas. Centenas de pessoas têm sido mortas em diferentes tipos de conflito. Tem de haver alguma mudança.
Phillips morreu enquanto levantava informações para o livro que se chamaria Como Salvar a Amazônia?. Então, como salvar a Amazônia?
Tem de mudar como as decisões são tomadas. A reconstrução da BR-319 evidentemente não leva em conta o impacto. É feita por outras razões. Não há benefício econômico. Outras obras, como a BR-163 (Cuiabá-Santarém), têm impactos, mas não dá pra dizer que não tem papel econômico transportando soja do Mato Grosso. As pessoas têm de entender que esses problemas como o da BR-319 não são irreversíveis. São decisões humanas. É importante não ser fatalista sobre isso, assim como a visão sobre mudança climática. As pessoas pensam que está tudo perdido, vai tudo acabar mesmo e se preocupam com outro assunto. Importante não entrar na armadilha de fatalismo.