O atual presidente da República Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, adota politicamente discursos firmados em pautas conservadoras alinhadas ao que ele e seus apoiadores chamam de “família tradicional brasileira” e “valores cristãos”. Por outro lado, Bolsonaro age, fala e se comporta publicamente de um jeito que se choca violentamente com os princípios de amor ao próximo.
Bolsonaro se autodeclara católico e, ao mesmo tempo, apoia-se no cristianismo protestante. Em 2016, ele até foi batizado nas águas do Rio Jordão, em Israel (mesmo local em que a Bíblia diz que Jesus foi batizado), pelo Pastor Everaldo Pereira. Pereira é membro da Assembleia de Deus Ministério Madureira e presidente do Partido Social Cristão (PSC). O casamento com Michelle Bolsonaro (evangélica), em 2013, foi celebrado pelo pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo.
Para ficar só no caso do presidente, e das eleições deste ano, o cenário ganha complexidade quando se desfazem totalmente as margens que separam política e religião — em cultos evangélicos transformados em palanque e na tentativa de se apropriar de celebrações católicas, como Cirio de Nazaré e a festa de Nossa Senhora de Aparecida — e quando valores são distorcidos.
Teoricamente, no Brasil, vivemos em um Estado laico (“em que todas as religiões contam com a proteção estatal. Consagra-se a liberdade de crença e de culto”). Mas quem acompanha o noticiário profissional sabe que a religião tem pautado o debate público e feito muita gente de fé se perguntar: afinal, que valores cristãos guiam as ações do candidato à reeleição? Isso deve ou não influenciar o voto?
A historiadora Gisele Cristina Pereira, liderança do grupo Católicas pelo Direito de Decidir e especialista e mestre em Ciência da Religião, explica que os evangelhos alertam sobre o exercício de uma fé vazia. “Não adianta invocar ‘Deus acima de tudo’, se o que se pratica é o ódio, a violência, a exclusão e a opressão. Não é Deus que está acima de tudo, mas um projeto autoritário que se utiliza da crença para se legitimar e fazer submeter”, afirma Gisele.
Para Magali Cunha, cristã, doutora em Ciências da Comunicação e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser), fica evidente o perigo de um discurso religioso instrumentalizado para a defesa de uma ideologia de extrema direita, que retira direitos e privilegia só algumas parcelas (já privilegiadas) da população. “[Isso] Diminui o acesso social à justiça, nega a pluralidade e a oposição. Então o discurso cristão está sendo utilizado particularmente para referendar e angariar adeptos a este princípio ideológico”, afirma Magali.
Um aspecto destacado pela pesquisadora é o fato de a ideologia do bolsonarismo ter alcançado com força igrejas evangélicas e católicas ao estimular uma imposição “daquilo que deve ser realizado e defendido”. Também alcançou, acrescenta Magali, um imaginário de que é preciso combater os inimigos da fé que estavam fora das igrejas. “Durante muito tempo eram [nesse campo] identificadas religiões de matriz afro, mas recentemente são as feministas, os ativistas LGBT e cada vez mais inimigos foram trazidos para o campo da política para serem combatidos. Além disso, agora mais recentemente se coloca os inimigos dentro da própria igreja, ou seja, quem defende a pauta de direitos consistentes na esquerda. Os mais progressistas são identificados como o inimigo dentro das próprias igrejas.”
Magali entende, assim como Gisele, que o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, assumido pelo governo Bolsonaro, não corresponde ao que o presidente em sua função realiza. “Notamos isso nas mais de 687 mil mortes por covid-19 no Brasil. Atitudes negacionistas e de não prevenção para salvar vidas. Foi o maior exemplo de que não é ‘Brasil acima de tudo’ e nem ‘Deus acima de todos’, porque Deus é misericórdia, cuidado, pastoreio que, se realmente fosse assumido, o governo teria um outro tipo de atitude.”
Outro exemplo citado por Magali é a política de armar a população. “Deus não é belicoso nem violento, o que rege o cristianismo são os evangelhos e neles a figura de Jesus é uma figura da pacificação, da mansidão, do respeito o que não corresponde ao que vem sendo aplicado por este governo.”