Matheus, de 11 anos, é um dos 950 alunos matriculados na Escola Municipal Abá Tapeba, uma unidade indígena para o povo Tapeba na comunidade de Jandaiguaba, em Caucaia, no Ceará. Em 2021, ele começou a cursar o sexto ano. Depois do início da pandemia, Matheus nunca voltou às aulas presenciais. O aparelho celular da mãe tem sido o instrumento de estudos dele, que segue no modelo remoto. A família está sem renda desde o ano passado, quando os pais do menino, uma empregada doméstica e um auxiliar de serviços gerais, perderam o emprego. Agora, eles lutam para colocar na mesa a comida que vinha por meio da merenda.
Ainda que o Brasil tenha reconhecido na Constituição de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, o direito dos povos indígenas a uma educação específica, antes mesmo da pandemia já enfrentava desafios. A crise sanitária e de saúde veio para acentuá-los, tanto nas escolas específicas para indígenas quanto nos outros modelos que recebem essa população. Passados um ano e oito meses dos primeiros casos de covid-19 no país, em meio à retomada das aulas presenciais, em várias partes do país a educação indígena segue esperando infraestrutura e condições de retomar as atividades plenas.
Ceará — De acordo com a Secretaria de Educação, até o momento, 12 escolas indígenas do Ceará adotaram o ensino híbrido, alternando tempo presencial na escola e ensino remoto, mediado por material impresso com orientações pedagógicas ou com o uso de algumas tecnologias. Outras sete escolas decidiram, na consulta à comunidade escolar, retornar 100% de forma presencial. Entre as 20 unidades de ensino que estão no formato remoto, alunos que retornaram às atividades escolares por meio da ação da busca ativa na comunidade estão sendo atendidos com aulas presenciais.
No entanto, uma queixa do presidente da Associação dos Professores Indígenas Tapebas (Aproint), John Tapeba, é a de que os aparatos tecnológicos distribuídos pelo estado suprem as demandas dos alunos do ensino médio, mas não chega nos alunos do ensino fundamental, que permanecem afetados com a falta de conectividade e disposição de aparelhos eletrônicos.
Com o avanço da vacinação no estado e o cadastro de adolescentes, o Ministério Público tem pressionado o governo a dar início às aulas de forma híbrida. Para John, no cenário atual, é impossível um retorno seguro. “Tem escola que não tem porta, não tem circulação de ar, só uma pia funcionando, além do principal fator: o vírus. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) já soltou boletins dizendo que o risco de contaminação das populações indígenas com a variante delta é maior do que a população branca/não-indígena”, completa.
Tem escola que não tem porta, não tem circulação de ar, só uma pia funcionando, além do principal fator: o vírus. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) já soltou boletins dizendo que o risco de contaminação das populações indígenas com a variante delta é maior do que a população branca/não-indígena
John Tapeba, presidente da Associação dos Professores Indígenas Tapebas (Aproint)
Rio Grande do Sul — A pressão pelo retorno também ocorre no Rio Grande do Sul. No mês de agosto as atividades presenciais começaram a retornar gradativamente nas escolas Mbyá-Guarani e nas escolas Kaingang. A Secretaria de Educação criou um protocolo de retorno às aulas, mas de forma ampla, segundo os professores, não especificou as necessidades das escolas indígenas e suas particularidades.
Segundo Eloir Oliveira, professor na Aldeia Estiva Tekoa Nhumdy, em Viamão, região metropolitana do Rio Grande do Sul, e representante dos professores indígenas Mbyá-Guarani no Sindicato dos Professores, as condições para o regresso são interpretadas como a única opção possível. “Como fazer as aulas online se o Estado não está dando as condições? Como o acesso à internet, a computadores ou notebooks para cada aluno. Então, fica difícil, ou seja, deixam as aldeias sem saída”, questiona o líder indígena.
Impactos — A preocupação dos profissionais de educação se explica nos dados disponíveis sobre o impacto da pandemia na educação brasileira. Ainda em 2020, um estudo realizado pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Itaú Social e Unicef já mostrava que 78,6% das redes de ensino tiveram algum problema de conexão de internet. Outro estudo, de maio deste ano, da Fundação Lemann, BID, Itaú Social e DataFolha, mostra que 8% dos estudantes com indícios de interrupção dos estudos em 2021 tinham como motivo para isso falta de acesso à internet.
***78,5% das redes de ensino no Brasil tiveram problema de conexão
***Abandono escolar é mais grave na população indígena
***Impactos da pandemia na educação são piores entre os estudantes indígenas
***Sem aulas, alimentação dos indígenas em idade escolar está comprometida
Por iniciativa própria, a escola onde Eloir ensina realizou uma reunião interna entre pais e direção. Ficou firmado o retorno híbrido, dois dias da semana as aulas seriam presenciais. Mas a adesão não foi a esperada. “As crianças querem estudar, o problema é a questão da prevenção mesmo, a escola ainda não está preparada para isso com os meios adequados em relação à prevenção. Até porque o Estado não dá assistência, eles querem que voltem às aulas mas nas condições mínimas, sem ter de fato uma prevenção bem efetiva”, conclui.
As crianças querem estudar (…). O Estado não dá assistência (…); quer que voltem às aulas sem ter de fato uma prevenção bem efetiva
Eloir Oliveira, professor na Aldeia Estiva Tekoa Nhumdy, em Viamão (RS)
Há um ano, uma pesquisa da Unicef e do Instituto Claro já havia identificado que o abandono escolar, juntando ensino médio e fundamental, era mais grave entre as populações indígenas brasileiras, sobretudo as que vivem em terras indígenas, com índices que superavam o dobro da média nacional. Os indígenas também estavam entre os grupos mais afetados pela indisponibilidade de atividades escolares no primeiro ano de pandemia no Brasil.
OUTROS IMPACTOS DA PANDEMIA NA EDUCAÇÃO INDÍGENA
- Sem aulas, crianças indígenas têm dificuldade para se alimentar
- Educação indígena: ensino híbrido reproduz dificuldades no modelo remoto
Esta reportagem foi produzida por meio do projeto Sala de Redação, desenvolvido pela Énois, um laboratório de comunicação que trabalha para impulsionar diversidade, representatividade e inclusão no jornalismo brasileiro. Confira as metodologias na Caixa de Ferramentas. As informações foram apuradas de forma colaborativa entre jornalistas dos veículos Maré de Notícias (RJ), Nonada (RS), O Povo (CE), Expresso na Perifa (SP) e Sul21 (RS)