Embora pouco falado na sociedade, o racismo alimentar está presente no dia a dia de muitas pessoas. E em grandes obras da literatura brasileira. Não é de agora. Um exemplo está em Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, de Carolina Maria de Jesus, publicado em 1960. A alimentação precária, a fome e a ausência do direito de escolha sobre o que ela e sua família podiam ou não comer dão o tom do livro. A base da escrita de Carolina — mulher pobre e preta que morava na Favela do Canindé, zona norte de São Paulo — foi o próprio diário.
Quatro décadas depois do lançamento do livro, a fome e a falta de escolha ainda são realidade para ao menos 116,8 milhões de brasileiros (mais da metade da população). Em 2020, essas pessoas não tinham acesso pleno e permanente a alimentos, o que configura algum grau de insegurança alimentar. Os dados são Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil.
A pesquisa foi feita em 2.180 domicílios nas cinco regiões do País, em áreas urbanas e rurais, entre os dias 5 e 24 de dezembro de 2020. Nos três meses anteriores à coleta de dados, 43,4 milhões (20,5% da população) não tinha comida suficiente e 19,1 milhões (9% da população) passava fome.
Para sair dessa situação que atinge principalmente pobres e pretos, a primeira coisa é pensar que comer precisa ser um ato antirracista. Quando se traçam estratégias, além do recorte social, é preciso ter um recorte de raça (Étienne Madureira, nutricionista)
Os resultados revelam outra face cruel do racismo, a alimentar. Sobre esse tema, o Expresso na Perifa conversou com a nutricionista Étienne Madureira, especializada em nutrição clínica e pesquisadora assistente do grupo CulinAfro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela explica que a pandemia de covid-19 deixou ainda mais evidente que o racismo também chega às mesas.
Existe racismo alimentar quando alimentação precária, fome e privação do direito de escolha do que comer atingem diretamente, e com mais força, a população preta e pobre
As famílias pobres, sobretudo as negras e que vivem às margens dos centros urbanos, estão mais expostas à má alimentação ou à falta dela.
A pandemia, afirma Étienne, acelerou ainda mais esse processo que por sua vez vinha sendo fortalecido no desmonte e esvaziamento de políticas públicas de alimentação adequada e combate à fome. Um exemplo foi a extinção do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), ocorrida no início do governo Bolsonaro.
Moradores de favelas, comunidades e bairros periféricos passam cotidianamente por mais obstáculos para comprar produtos frescos e não industrializados. Sem terra, não produzem alimento próprio e o que está ao alcance, quando está, são comidas de baixa qualidade nutricional e ricas em gordura saturada, sódio e açúcar. A curto, médio e longo prazos essa situação pode desencadear doenças a exemplo de hipertensão e diabetes, mais prevalentes na população negra.
“O racismo dentro desse sistema vai perpetuar as desigualdades sociais e distanciar essa população da produção e do consumo de alimentos saudáveis”, afirma Étienne. “Ele efetiva o nutricídio [genocídio alimentar provocado contra as populações negras], pois está relacionado tanto à fome quanto à comida envenenada com agrotóxicos ou sem qualidade.”
A especialista chama a atenção para outro agravante: a promoção de dieta e hábitos disfuncionais na mídia e na indústria alimentícia. E acrescenta: “Para sair dessa situação que atinge principalmente pobres e pretos, a primeira coisa é pensar que comer precisa ser um ato antirracista. Quando se traçam estratégias, além do recorte social, é preciso ter um recorte de raça.” Outra medida importante, avalia Étienne, é o fortalecimento de organizações coletivas que trabalham com hortas e projetos agroecológicos urbanos para que esse tipo de alimentação chegue a pessoas que vivem em desertos alimentares.
Em 2021, o País voltou ao Mapa da Fome, uma espécie de marcador global que mostra ontem tem gente passando fome no mundo. Ele foi criado pela Organização das Nações Unidas no início dos anos 2000. Todo país que tem 5% da população, ou mais, com fome entra para o mapa. O Brasil esteve nesse grupo por muito tempo, saiu em 2014 e voltou em 2021
Glossário da fome Fonte: Unicef Fome: sensação desconfortável ou dolorosa causada por privação de alimentos; por não comer calorias suficientes. Subnutrição (crônica). Insegurança alimentar moderada: estado de incerteza sobre a capacidade de obter alimentos; risco de pular refeições ou ver a comida acabar. Insegurança alimentar grave: ficar sem comida; fome experimentada; ficar sem comer por um dia ou mais. Má nutrição: condição associada a deficiências, excessos ou desequilíbrios no consumo de macro e/ou micronutrientes. Desnutrição e obesidade são formas de má nutrição. O baixo peso da criança em relação à altura (desnutrição aguda) ou a pouca altura em relação à idade (desnutrição crônica) são indicadores de desnutrição.
Muito bom e triste esse artigo…
Esse país é lindo e plantando, tudo dá… O agronegócio não pensa na terra como produtora de alimentos, pensa com produtora de dinheiro… Essa monocultura feita só para exportação está matando nosso povo, principalmente pobres e pretos.😔😔
A desigualdade social impacta diretamente na alimentação, mais especificamente do grupo mais pobre. É difícil pra uma pessoa com sobrepeso ir ao nutricionista e ele lhe passar, castanhas, pão integral, diversas frutas, quando na verdade esse indivíduo consegue ter acesso a alimentos básicos, pobres em fibras, ricos em gorduras, etc.
Excelente artigo!!!!
Trabalho em uma comunidade do Rio de Janeiro e percebo exatamente isso: a falta de acesso a verduras e legumes, por não ter tantas vendas disponíveis e próximas à comunidade.
Muito boa a leitura! 🤙🏽
Excelente texto. Muito esclarecedor. O Brasil precisa, urgentemente, voltar a ter um governo que se preocupe com essa e outras questões prioritárias. É inadmissível este país voltar a figurar no Mapa da Fome.