Tamiris Coutinho, moradora de Niterói (RJ) e recém-formada em Relações Públicas na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), deu a seu trabalho de conclusão de curso o título Cai de Boca no Meu B*c3t@o: o Funk como Potência do Empoderamento Feminino’. O nome é uma referência ao hit de MC Rebecca composto por Ludmilla.
De acordo com a autora, o objetivo do trabalho é provocar a reflexão sobre a importância das mulheres no funk não só no cenário musical, e sim na sociedade, principalmente em termos de representação. É uma análise crítica da manifestação das meninas na cena e um olhar para o empoderamento feminino.
A ideia de Tamiris foi estudar a recepção que as mulheres dão às letras e como isso reflete na mudança de comportamento das pessoas em uma sociedade com raízes que estão fincadas no machismo. Viralizado nas redes sociais, o TCC virou livro
Qual sua relação com o funk? Como apareceu na sua vida?
Eu passei grande parte da minha vida estudando na rede pública de ensino. Depois do ensino médio, trabalhei com diversas coisas. Fui digitadora de laudo médico, recepcionista, inclusive tenho uma formação técnica em radiologia, e trabalhei na área da saúde por alguns anos. Por mais que eu tivesse uma atuação na área da mulher, eu trabalhava com mamografia, eu percebia que faltava algo. Foi quando eu decidi prestar vestibular e fazer o cursinho social que tive esse primeiro aparato para ver as coisas sob uma outra ótica. Conheci o curso de Relações Públicas na Uerj e pensei ‘é o que eu quero, é o que eu consigo fazer’.
Em 2015, quando entrei na universidade, tive outras experiências que ampliaram ainda mais o meu senso crítico, a minha vivência. Uma delas foi o evento Liberta DJ, que eu e minha turma produzimos para duas disciplinas da graduação. É aí que começa de fato minha relação com o funk do ponto de vista do movimento, porque até então minha relação era só com entretenimento, de ouvir, dançar, sair. E a partir desse evento, comecei a observá-lo sob outros aspectos.
O Liberta DJ foi um evento de três dias. Teve cine-debate, palestras, roda de conversa, workshop e nomes importantíssimos pra dentro da Uerj para falar sobre funk, como as funkeiras Yasmin Turbininha, MC Smith, Sabrina e Thaisa Machado com o Afrofunk. Dali eu percebi que queria o funk como meu objeto de estudo. E depois partindo de um experiência pessoal minha, comecei a observar como as mulheres se comportavam em relação a música Cai de Boca, da MC Rebecca. Parecia que era um hino de libertação, pois elas cantavam com muita vontade. Então isso despertou a curiosidade.
No livro você mostra que as letras de funk podem servir como um caminho para as mulheres se sentirem mais livres e poderosas. Você percebe as mulheres ao seu redor abraçando essa ideia?
Acontece a partir do momento em que o funk é utilizado pelas mulheres como uma forma de construir carreira, buscar representatividade, espaço de fala, buscam ser vistas e se manifestar acerca daquilo que acreditam. E [acontece também] quando o pensamento é difundido, como as músicas vão chegar nas pessoas, como essas pessoas vão ouvir aquele discurso, como vão criticar. Daí, seja cantando, dançando, existem diversas formas de acontecer. Eu vejo um movimento muito forte das MC’s trazendo pautas e se envolvendo em questões importantíssimas para o debate de gênero na sociedade.
Claro que ainda temos algumas deficiências em debates acerca do tema, e é uma pauta que não é só do funk. O funk é um movimento sociocultural, mercadológico, musical, que é feito por pessoas que fazem parte de grupos, que possuem suas ideologias e pensamentos, e sabemos que acabamos refletindo muitas coisas que estão entranhadas como o machismo, a questão da ideologia patriarcal, isso tudo a gente acaba encontrando no funk e em outros diversos gêneros musicais. Por isso é importante esse debate.
O trabalho é no dia a dia, nas coisas que a gente produz, fala, em músicas, vídeos, livros, da forma que a gente puder encontrar de manifestar e reverberar a pauta do empoderamento. E eu gosto de frisar que o empoderamento não pode ser confundido com mera liberdade individual, pois ele parte de uma vontade individual para ser uma pauta coletiva.
Como enxerga as letras do gênero acusadas de ridicularizar e violentar as mulheres?
Essas músicas são o reflexo da sociedade. É muito triste porque parece que tudo que há de ruim está no funk, como se os outros gêneros musicais não reverberassem a ideologia patriarcal. Sexismo, machismo, racismo, a questão de classe. Debater cada vez mais esses tópicos vai refletir positivamente nas produções culturais, e não somente nas feitas pelos homens. Essa lógica está entranhada na sociedade como um todo, e atinge mais as mulheres.
Quando divulguei o TCC, recebi muitos comentários de mulheres dizendo que as mulheres empoderadas são as que acordam cedo pra trabalhar, estudam, cuidam do marido e dos filhos. E as funkeiras não fazem isso?! Aí você começa a pensar em por que uma mulher vê o empoderamento dela como válido e o de outra não? E quais aspectos ela está colocando na cabeça dela pra fazer essa argumentação?
Uma mulher falando abertamente sobre sexo já causa um certo incômodo. Imagina quando se coloca a palavra “b*c3t@o” logo na capa de um livro. Você sofreu alguma perseguição/censura em relação ao seu trabalho?
Na verdade, a mulher se manifestar sobre qualquer coisa que diz respeito a ela já é uma afronta. Desde que o mundo é mundo as mulheres colocadas sob a dicotomia de que de um lado está a mulher boa, que vai casar, e de outro a ruim, a que não presta e que nenhum homem vai querer saber.
É uma dicotomia pautada em características predispostas como femininas: boas, recatadas, discretas, que não expõem suas necessidades, só estão ali para agradar o marido e os filhos. Qualquer coisa que ela fizer fora desse script já é vulgar, não presta, não tem valor.
Quando fala de sexo, a gente vai automaticamente pra esse lugar. Sofri com muitos discursos de ódio, que usaram como pauta central não somente o uso da palavra “b*c3t@o” no título e não somente a pauta da sexualidade, mas muito pelo o que eu também tava representando, que era um movimento sociocultural, em sua maioria de pessoas pretas, de favela, da universidade pública.
Tive meu trabalho usado como instrumento político. Deputados disseram que iam abrir moção de repúdio na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, recebi denúncia oficial no canal de ouvidoria da Uerj, vi pessoas fazendo corrente pra que me denunciassem pro Ministério da Educação. Enfim, acabei de fato atingindo pessoas que não imaginei, líderes políticos por exemplo, e isso me deixou chateada. Usarem meu trabalho como instrumento político contra a universidade.
Como as pessoas ao seu redor e a universidade receberam a ideia? Teve medo a ponto de querer mudar o tema?
Por mais que a minha orientadora tivesse uma visão um pouco longe do que era o funk, ela super me apoiou, e sempre esteve de peito aberto comigo. No começo ela me falava que teria, sim, uma certa dificuldade pra mostrar que o funk empodera mulheres, porque até então ela também estava envergonhada naquele senso comum. E foi uma troca muito valiosa que desencadeou um trabalho que deu super certo. Os professores da banca, os professores como todo, meus colegas…, a própria faculdade de comunicação na época emitiu uma nota de repúdio. Não tive medo de quererem mudar o tema em momento nenhum, e em nenhum momento me aconselharam a mudar o título, muito pelo contrário.
Me lembro de uma professora falando que o trabalho era meu e eu que tinha que usar um título que fosse pertinente. Muita gente achou que eu estava querendo causar, mas quando paravam para ler viam que eu justificava academicamente por que aqueles trechos e termos estavam ali. Então foi essa a repercussão, de apoio, respeito, acolhimento. Até hoje eu recebo feedbacks que me deixam muito emocionada. São pessoas que enxergam no meu trabalho inspiração para fazer os trabalhos delas.
E o impacto da publicação?
Desde sempre acreditei no trabalho, porque eu acreditava que aquele tema deveria ser debatido. Eu divulguei o TCC com toda cara e coragem de que as pessoas pudessem dizer que tava mal escrito, que estava ruim. Não imaginei que atingiria pessoas tão importantes, pessoas do próprio movimento funk, a MC Rebecca, Alana Leguth da Kondzilla, enfim, atingiu pessoas que estão dentro do movimento sob diversos aspectos, seja empresariando, seja cantando. Mobilizando socialmente. Nesse sentido, tive muito apoio.
E claro que teve a onda dos haters, de ter caído nas mãos de um pessoal que criou um “auê” me colocando como fake news em grupos de WhatsApp… Então foi por isso que o TCC se transformou em livro tão rápido, porque estávamos com medo de mexer no trabalho, porque eu fui tão inocente que eu divulguei em link do Drive, então qualquer pessoa poderia ter acesso e modificar o conteúdo.
Quais frutos esse trabalho tem trazido pra você?
O trabalho me rende frutos desde 2019, que é quando eu estava produzindo. A partir desse momento, pude conhecer pessoas que hoje são meus companheiros, inclusive no coletivo Funk no Poder que eu faço parte, conheci muitas pessoas que estão engajadas na mesma pauta que eu, e isso tem sido muito rico. Outras pessoas puderam vir me procurar por conta da repercussão do trabalho, fui convidada para dar palestras, participar de debates, o auge foi poder participar de um painel na Bienal Internacional do Livro que teve aqui no Rio de Janeiro, no final do ano passado.
Percebo que estou no caminho certo, e o que eu acredito e o que eu faço realmente têm valor, que as pessoas enxergam valor, e isso me deixa realmente muito feliz. E ainda tem muita coisa pra acontecer, recentemente eu descobri que eu passei no processo seletivo do mestrado, então continuarei pesquisando a atuação das mulheres funk. Além de outros projetos que estão rolando, a gente tem o coletivo, a Braba Comunicação que tem o objetivo de ser um espaço de ajuda para pessoas que querem entender melhor sobre o funk, desde projetos mais sociais que ajudem mulheres que querem desenvolver suas carreiras até o empresário que faz festa funk nos Estados Unidos e quer saber sobre o que está falando.
Não queria que [o TCC] ficasse preso nas universidades. Quero que outras pessoas tenham acesso a tudo que estou produzindo e debatendo e possam tirar seus aprendizados, fazer suas críticas, pensar em outros projetos. Assim a gente continua movimentando o funk da forma que ele merece, com debates pertinentes e pautados sob óticas que vão além do senso comum, do preconceito, do machismo e do racismo.
Maravilhosa!